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Terça-feira, 18/6/2002
Canarinho velho e pessimista
Bruno Garschagen

O futebol brasileiro, com dribles, ousadia, malícia, apelidado de futebol-arte, começou a grangrenar a partir da Copa de 1982. Absurdo, claro. Mas foi. A tese não é nova, mas o absurdo não cansa de cutucar. Aquela seleção que reduzia o torcedor a mero espectador embasbacado. Um grupo de jogadores que fazia o futebol parecer tão fácil. Os passes escorriam tal um rio navegável. Os chutes a gol encontravam seus destinos como punhais à certeza do ferimento fatal. Quantos pais não perderam ali seus futuros médicos, advogados, engenheiros.

Mas foi naquele ano. O ano de Sócrates, Júnior, Zico, Cerezo, Leandro, Oscar, Luizinho, Falcão, Éder, Serginho Chulapa e Valdir Peres. A intrépida trupe que seguia as notas do regente Telê Santana. Jogavam na harmonia libertária do jazz. Os acordes marcavam o ritmo, mas nada superava o prazer do improviso. Toques no calcanhar de Aquiles. Chapéus de feltro. Chuveirinhos dourados. Lançamento de dardos. E a bicicleta, pelos pés de Zico, consagrava aquela geração.

As vitórias, sim meus caros, as vitórias nos deixaram com olhos dilatados. Mal acostumados olhos embaçados depois de um jogo contra a Itália, nas quartas de final. Foi ali. Numa esquina espanhola uma dama ensaiou os últimos passos de uma dança triste; uma elegia aos deuses que derramavam a derradeira lágrima, que evaporou antes de tocar o chão. Perdíamos a maior chance de sermos campeões com uma seleção brilhante. Quatro anos antes na Argentina, poderíamos ter levado a copa invictos, senão fosse o regulamento que favoreceu os donos da casa numa goleada de seis a zero sobre o Peru que até hoje nos deve satisfação. Não seria a mesma coisa. Qualquer comparação padeceria de vícios insanáveis e de uma aleivosia imperdoável.

A derrota de 1982 carrega consigo um encanto amargo. Era o time que deveria vencer; que poderia; que merecia. Era o time que nos embalava no colo a cada partida; que nos fazia sentir incapazes de sermos os técnicos; que nos trazia uma satisfação idônea; que nos fazia dizer abertamente, e com aquela rara certeza que o futebol nos concede, que éramos o melhor do mundo no esporte. Mas acabou. Não o sonho, mas a nossa maneira de jogar. Nosso futebol começava a enfrentar o mais insidioso processo de condenação.

A vitória da Itália, que fazia uma campanha irregular na copa, feriu a ousadia do jogo brasileiro. A partir dali, técnicos passaram a aplicar em seus quintais o esquema do futebol europeu, guindado à condição do mais terrível dos males: o futebol de resultados. Ganhava status nos grandes, médios e pequenos clubes e começava a deformar gerações nas escolinhas. O zagueiro e o goleiro, figuras coadjuvantes no coração de torcedores e aspirantes a jogador profissional, passaram a atrair os holofotes. A defesa, agora, dividia as atenções antes devotadas ao meio de campo e ataque. Como diz meu amigo Fernando Gomes, a teoria e exibição do futebol-arte passou a ser incompatível com o clamor da diretoria e dos técnicos pelos resultados.

Quatro anos de aviltamento. O último suspiro foi em 1986. Telê novamente era o técnico. O homem que preservava a indispensável alegria de jogar. Convidou a turma atacada desde 1982. Orgulhosos, tínhamos do que nos gabar. Nem todos puderam dar seu sangue. Mas Zico e Sócrates estavam. E mais uma moçada que, achávamos, manteria o nosso canarinho voando. Os sorrisos voltaram às faces impuras dos torcedores. A seleção nos dava nas primeiras partidas o que queríamos: dribles, lances ousados, os sorrisos marotos que vemos diariamente nos rostos sujos dos moleques nas peladas estampados nos jogadores, os gols.

Mas o ferimento, dessa vez, era profundo demais para evitar a sentença. As penalidades máximas perdidas, primeiro durante o jogo e depois no desempate contra a França, alvejaram nossos anseios. Por uma dessas inflexíveis determinantes, nunca mais seríamos os mesmos. Agora também no futebol. O canarinho, preso na gaiola, nunca mais cantou. E, às vezes, ensaia um choro baixo. Um lamento quase silencioso para não incomodar os reis mortos do futebol.

Seguimos para a pérfida prova de 1990. Alguém se lembra daquela copa? Pô, mas tínhamos Careca, um dos maiores craques do nosso futebol. E Müller ainda batia um bolão. Vai entender. Perdemos da Argentina nas oitavas de final. Até aquela copa, ainda chorávamos.

Pulamos para 1994, o ano do tetra. Copa insossa com gosto de água mineral. A defesa era um primor de organização. Conseguiu que Aldair não cometesse erros numa copa inteira, o que não é pouca coisa. Contudo, o lateral Branco foi o único a nos dar alguma emoção com seu gol de falta contra a Holanda. Ganhamos a quarta copa. Final contra a Itália. Engasgados desde 1982. Vencemos nas penalidades. Ganhar copa nas penalidades só vale para efeito de registro. Está registrado.

O que dizer de 1998? Tínhamos Ronaldinho. Espalhou-se o boato de que ele, finalmente, soltaria o canarinho verde-e-amarelo da gaiola. O único a possuir a chave, dizia-se à boca miúda. Arrebentava na Espanha. Driblava. Corria como um louco. Nunca o termo explosão foi tão usado para definir suas arrancadas que, não raro, terminavam numa peralta comemoração do menino que conquistara o mundo. Nos faltava time, porém. As estrelas estavam todas: Roberto Carlos, Denílson, Cafu, Bebeto, Tafarel. Ainda nos faltava time. Cambaleamos até a final com a França, a que nos havia sangrado em 1986.

Início do jogo, a falta de Ronaldinho na lista da escalação do time nos assustou. Depois, ele entra no campo entre os titulares. Ué? Moribundo, o craque arrasta suas correntes pela grama. Informações desencontradas eram baforadas pelos narradores. Perdemos. Time desorientado. Derrota apática. Não valia o porre nem a queima da camisa. A vitória de 1994 nos evitava sofrimentos posteriores. Se ganhar a copa era aquilo, que mal seria perdê-la. Já havíamos nos embriagado mesmo até a final.

De 1998 até 2002 amargamos técnicos de cujos nomes fiz questão de esquecer e times fragorosamente ruins, para usar um eufemismo. Testes e mais testes. Resultados medíocres que envergonhavam todas as safras boas de antes. Denúncias de corrupção, desvios de dinheiro e outra atividades menos nobres na nossa amada CBF. Era mais emocionante o noticiário policial.

Estamos aqui, enfim. Três vitórias (escrevi este texto no sábado). Primeiro do grupo. Uma seleção com cicatrizes, mas que fez uma bela partida contra a Costa Rica. Ronaldinho driblou, fez gols. Ricardinho entrou no time como um comandante de navio. Em dois minutos, arrumou o time que se apavorava com os dois gols do adversário. Júnior também entrou surpreendendo. Distribuiu passes e lascou um gol de placa nos já acuados jogadores da Costa Rica. A defesa, porém, é uma piada. Três zagueiros batem cabeça. O que mais impressionou é que os jogadores, talvez pela aparente facilidade, jogavam alegres. Ronaldinho disse ter se divertido muito. O técnico Luís Felipe ainda não sabia se escalava Ricardinho. Disse que vai treinar mais a defesa. Se os treinos vão surtir efeito, só saberemos na final.

O fato é que o canarinho, já velho e pessimista da vida, aguarda uma última alegria para descansar em paz ou, talvez, apresentar ao mundo o resultado de uma breve escapulida.

Após o jogo contra a Bélgica...
Não vai, não vai.

Bruno Garschagen
Cachoeiro de Itapemirim, 18/6/2002

 

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