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Sexta-feira, 21/6/2002 Grandes Carcamanos da História Alexandre Soares Silva No Brasil, o lobby italiano se contrapõe principalmente ao lobby português. Pode reparar: ninguém diz mais piada de português do que descendentes de italianos; acho mesmo que quem inventou a tradição devia ser italiano, com raiva da presença portuguesa aqui. E os brasileiros, que são portugueses que ficaram, acham graça e dizem que é verdade. Acho que o sucesso do lobby italiano no Brasil se deve ao fato de que os brasileiros querem acreditar nos italianos. Brasileiros são como uma criança que se envergonha um pouco dos pais e imagina que é adotado, e seu pai de verdade é (digamos) um corredor de Fórmula Um. E assim os brasileiros ficam tentando achar que os italianos são os construtores do país, não os portugueses; e com novela atrás de novela tentam reforçar esse mito. O motivo do desprezo por Portugal é óbvio: era Portugal que cobrava impostos. Se Veneza tivesse cobrado impostos dos brasileiros, os brasileiros odiariam os italianos; mas os italianos nunca administraram o Brasil, nem cobraram impostos. Durante o final do século vinte, brasileiros com sobrenomes italianos foram ocupando cargos em jornais, canais de tevê e agências de publicidade, como o italiano Gramsci aconselhava aos intelectuais comunistas. Mas ao invés de fazerem a propaganda da Revolução Comunista, fizeram apenas a propaganda dos próprios pais - colocando música italiana (a horrenda música pop italiana) em comerciais de sabonete, para mostrar subliminarmente que Itália é delicada, refinada, chic. Imagine uma propaganda de sabonete com música de Amália Rodrigues no fundo. Não dá. Mas vamos examinar esses pontos de perto. ![]() ![]() Se me citarem os sagrados nomes de Sophia Loren, Silvana Mangano, Claudia Cardinale, ou Ornella Muti, responderei com os não menos sagrados nomes de Catherine Deneuve, Brigitte Bardot, Fanny Ardant, Isabelle Adjani e Juliette Binoche. Mulher bonita há em qualquer parte do globo - meu Deus, até mesmo Gales, que é famosamente uma terra de gente feia, produziu Catherine Zeta-Jones. 2)Arte, então. Vamos deixar o Império Romano de lado (é outra coisa) e nos concentrar na Itália mesmo. Pintura: as qualidades de Giotto, Mantegna, Carpaccio (sim, é um pintor), Ticiano, Veronese, Rafael etc são óbvias demais, e eu não vou negá-las só para ganhar a discussão. Fiquei convencido quando Gustavo Corção escreveu, no seu livro “Dois Amores, Duas Cidades”, que o Renascimento foi mais um passo pra trás do que um passo pra frente- em termos filosóficos, espirituais, morais. Mas no que diz respeito à pintura sei que isso não é verdade; nunca, me parece, a humanidade pintou tão bem quanto durante o Renascimento Carcamano. Mas esses são pintores de 1300, 1400 e 1500. Costuma-se dizer que Portugal vive de glórias passadas - mas e a Itália? À medida que os séculos foram passando, os grandes pintores italianos foram sumindo. O século XVIII ainda produziu Tiepolo, Guardi e Canaletto - enquanto a França tinha Watteau, Boucher, Fragonard, e o grande Chardin. Mas quando chegamos no século XIX o encolhimento do talento italiano para a pintura chega a ser humilhante: enquanto a Espanha produz Goya, a Itália tenta responder com mediocridades como Vincenzo Migliaro. Não adianta nem mencionar o que estava acontecendo na França, enquanto Morelli pintava sua obra-prima Il Conte di Lara ; Gauguin, Manet, Monet, Renoir, Pisarro, Corot, Toulouse Lautrec, Cézanne, Moreau, Redon, etc. Na verdade, para que a França fosse reduzida à estatura da Itália no século XIX, temos que imaginar todos esses pintores franceses morrendo no berço – um segundo massacre de Herodes, do qual só teria sobrevivido o bebê (e futuro pintor interessantinho) Puvis de Chavannes. E mesmo assim, Puvis de Chavannes, sozinho, é bem melhor do que qualquer pintor italiano do século XIX. O século vinte é um pouquinho melhor para a pintura italiana - mas só um pouquinho. A Itália produziu grandes nomes como Modigliani e Morandi; mas quase estragou tudo produzindo Giorgio de Chirico. Contraponha a isso os grandes pintores franceses do século XX. Pode ser mesquinho e excluir Picasso e Salvador Dali, que ao fim e ao cabo eram tão franceses quanto Van Gogh; ainda restam Vlaminck, Derain, Marquet, Braque, Léger, Utrillo, Picabia, Bonnard, Dufy, Dubuffet e Juan Gris; nabis, fauves , surrealistas, abstratos. Na verdade, Matisse sozinho já bastaria. 3)Literatura: A Itália conheceu cedo a grandeza literária , na prosa e na poesia – Dante, Petrarca e Bocaccio surgiram num intervalo de 50 anos - e depois emudeceu. Ah, houve Ariosto, e Torquato Tasso; mas onze anos depois da morte de Tasso (1595), Corneille nasceu na França; e logo depois Molière e Racine - e cessa tudo quanto a antiga musa canta. De cabeça, não consigo me lembrar de nenhum poeta italiano do século dezoito; a enciclopédia me lembra que há Alfieri (1749-1803), mas depois de examinar alguns poemas online chego à conclusão de que ele não vale metade de um André de Chénier (1762-1794). No século XIX há pelo menos um poeta, Leopardi, e um romancista, Manzoni; mas sinceramente o que é isso perto do que a França produziu? O que pode Leopardi, sozinho, contra Hugo, Baudelaire e Gautier? Não, vamos parar de comparar a Itália com a França; comparemos com Portugal, e até mesmo com o Brasil. Manzoni é interessante, mas não chega aos pés de Eça de Queiroz - ou de Machado de Assis. E no século vinte, quando a Itália produziu nomes interessantes como os dois Italos (Svevo e Calvino), é preciso admitir que, por melhor que seja Eugenio Montale, não chega às canelas de Fernando Pessoa; nem ao queixo de Carlos Drummond de Andrade. 4)Música: Eu sei, vocês estão pensando em Verdi, Rossini e Puccini. Confesso que às vezes não resisto e canto, no chuveiro, Parigi o cara, noi lasceremo. E queria dizer, para provocar um pouco mais, que prefiro Wagner - mas isso nem sempre é verdade. Entretanto acho que é significativo o fato de que a maior ópera composta em italiano tenha sido feita por um austríaco (Don Giovanni, de Mozart). Aliás, como se sabe, Mozart tinha péssima opinião dos italianos; numa carta ao pai diz sobre o músico Clementi que ele “ é um Ciarlatano, como todos os italianos” (carta a Leopold Mozart, datada de 7 de Junho de 1783). Quanto à música atual, mantenho que nada é mais horrível do que o pop italiano; nem mesmo rap, pagode, bunda music ou navel music; não, nem mesmo muzak; nem mesmo Paul Mauriat. No Brasil, graças ao lobby italiano, donos de cartórios e postos de gasolina, em seus carros sempre caros demais, gostam de ouvir Eros Ramazzotti ou Laura Pausini ou Domenico Modugno; suas mulheres dizem para as amigas: “Olhando pra ele ninguém acredita, mas o Rodolfo é tão sensível!”. Por algum motivo, anfitriões em São Paulo recebem seus convidados ouvindo isso – da mesma forma que alguém que não entendesse de vinhos poderia achar très chic servir o Vinho do Palmeiras num jantar. Mas compare a relativa breguice de uma música pop francesa (Que C’est Triste Venise, por exemplo) com a breguice de Sapore di Sale. Não, pior; compare uma música realmente brega como Je T’Aime com a breguice quase radioativa de Champagne ( Per Brindare un Incontro...) . Cresci ouvindo a voz ardida de Rita Pavone cantando Datemi un Martelo, da qual ainda gosto muito; mas mesmo assim tenho que preferir o pop francês. Amore, scusami! Testemunhos: Berlusconi, cinema dublado e Pepino di Capri são provas suficientes de falta de civilidade; mas mesmo assim chamo como testemunhas, para encerrar o caso, dois experts em sofisticação: Edgar Allan Poe e Tom Ripley. 1) Edgar Allan Poe (1809-1849) – No seu conto de vingança O Barril de Amontillado , o escritor americano escreveu: “Ele se orgulhava do seu conhecimento de vinhos. Poucos italianos têm o verdadeiro espírito de connoisseur. Na maioria das vezes seu entusiasmo se adapta àquilo que a ocasião e a oportunidade exigem, tendo em vista enganar milionários ingleses e austríacos. Em pintura e pedras preciosas, Fortunato, como todos os seus compatriotas, era um impostor..”. ( “He prided himself on his connoisseurship in wine. Few Italians have the true virtuoso spirit. For the most part their enthusiasm is adopted to suit the time and opportunity--to practise imposture upon the British and Austrian millionaires. In painting and gemmary, Fortunato, like his countrymen, was a quack...” ) 2) Tom Ripley – Ninguém tem mais savoir-vivre (e savoir-tuer) do que esse personagem da escritora americana Patricia Highsmith (1921-1995). Se não fossem os assassinatos e as falsificações, juro, queria ser como ele - que casou com uma francesa linda e rica, e vive numa cidadezinha francesa chamada Villeperce, passando seus dias fazendo jardinagem, lendo, pintando, tendo aulas de cravo, e à noite recebendo amigos de Paris. Pois bem: em O Talentoso Mr. Ripley (o livro, não o filme), Ripley vai para a Europa pela primeira vez, tentar convencer um pintor chamado Dickie a sair da Itália e voltar para os EUA. Ripley se apaixona pela Itália e logo está falando italiano melhor do que Dickie; mas mesmo inexperiente, aos vinte anos, Ripley sente intuitivamente que a França deve ser um pouquinho menos grosseira, mais discreta, “mais chic”. Dickie não quer ir; é um boçal e um pintor sem talento. Assim que Ripley o mata (oh, por outro motivo: dinheiro), a primeira coisa que faz é ir para Paris. Resumo: Tenho agora algumas linhas para encerrar o caso; então vou deixar ao menos uma coisa clara. Meu propósito não é dizer que a Itália é uma porcaria; a Itália não é uma porcaria. Nenhuma nação que tenha produzido Rafael e Totò pode ser uma porcaria. Mas o lobby italiano, como todos os lobbies, é. Esse lobby vende duas imagens dos italianos: se um italiano é rico, é aristocrático – interessado em vinhos e arte e belas mulheres; se é pobre, por mais ignorantão que seja, é sempre admirável. No Brasil, onde cultura não causa muita admiração, o lobby italiano escolheu sabiamente popularizar o estereótipo do italiano pobre, mas “simples, batalhador, cheio de vida e paixão”, etc etc. Esta novela que está começando é um exemplo disso – a própria propaganda da Globo se referia aos italianos, do modo asquerosamente sentimental que a Globo sempre tem, como “essa gente sofrida e batalhadora”. E ah, sim – sensual – reza o estereótipo que os italianos são sempre sensuais, sejam lá de que classe forem. Esses estereótipos podem bem ofender alguns italianos de bom senso, mas mesmo assim beneficiam o povo italiano e foram criados pelo lobby italiano. Os principais propagadores desses estereótipos têm sido a Globo, um certo romance de E.M.Forster, as propagandas de carro e duas dezenas de filmes românticos em que americaninhas lindinhas se apaixonam por italianos de barba por fazer. Última Prova O teólogo quinhentista Heinrich Bünting fez um mapa famoso (abaixo) em que a Europa é uma mulher; a Espanha é a cabeça; Portugal é a coroa; mas a Itália é só um braço... Alexandre Soares Silva |
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