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Terça-feira, 2/7/2002
Marcas da escrita
Bruno Garschagen

Escrever sempre deixa marcas. É um turbilhão de essências, ora sulfurosas ora inodoras. Cada texto arranca um naco de existência. Aos poucos, a imagem do escritor sai de cena sem agradecer a platéia deixando impressas sem pudor suas dores ornadas de adjetivos. Cada frase denuncia a parte do corpo mutilada, o pedaço que se esvai para ampliar-se no altar das letras idôneas.

Não há recomposição física. Escreve-se, escreve-se até a extinção do corpo pela palavra. Talvez por isso, num exercício fantasioso de imaginação, Sócrates preferisse conversar a escrever. Mas sem Platão, que nunca saberemos até que ponto nos legou fielmente o pensamento de seu mestre, as idéias perderiam a batalha contra o vento. "Lolita tem fama, eu não. Eu sou um romancista obscuro, duplamente obscuro, com um nome impronunciável", declarou Vladimir Nabokov (1899-1977).

O fervor pela literatura só traz recompensas futuras. O tempo, para o escritor, resta imune ao relógio: os dias demoram semanas. Como se a mão mágica do poeta conduzisse sorrateiramente os ponteiros no sentido contrário a cada hora badalada. Blaise Cendrars (1887-1961) tinha o trabalho como uma praga, e exatamente por isso, jamais fazia dele um hábito. "Não tenho nenhum método de trabalho. Experimentei um, funcionou, mas isso não é motivo para me ater a ele pelo resto da vida. Tenho mais o que fazer na vida, além de escrever livros".

Escrever nos conduz à fina linha que abisma entre o tormento e o prazer. Não acredito em textos incapazes de violentar seu autor no momento em que são expelidos. E também não considero todos os escritores uns desgraçados, como queria Virginia Woolf (1882-1941), sob o argumento de que as pessoas sem palavras é que são felizes. O escritor é o artesão que ao final do dia calcula sem pressa as assinaturas que o formão aplica nos dedos. Ao reverso do carrasco, quem escreve não afaga a insensibilidade para tornar palatável seu ofício. É capaz de chorar sofregamente enquanto acaricia um escorpião escarlate.

Ordenar o caos das idéias é como cavalgar Valquírias. Entregar-se sabendo que quebrar o pedestal na queda é mais fácil do que forjar um muro, como fez Dylan Thomas (1914-1953), com estrofes como a de "Não entre nessa noite acolhedora com doçura". Quem escreve empunha um arco, mira e acerta às risadas a testa do tolo que sustinha a maçã.

O escritor vive num tormento, físico ou existencial. Caminha lentamente sobre a linha de arame farpado de ouro falsificado. Escrever é purgar os sofrimentos. Quem o faz, consagra a vida numa outra esfera de liberdade. Está isento, por isso, do julgamento do homem médio, e até do seu. Sua moral é de outra espécie; suas falhas de outro gênero; suas virtudes, sem família. "Se um escritor tiver que roubar a sua mãe, não hesitará: 'Ode a uma urna grega' (de John Keats, 1795-1821) vale mais do que qualquer punhado de velhas", torpedeou William Faulkner (1897-1962), para quem a única responsabilidade do escritor era para com sua arte. "Será inteiramente desapiedado se for um bom escritor. Tem um sonho. Isso o angustia tanto que ele tem que se livrar dele. Não tem paz até então. O resto vai por água abaixo: honra, orgulho, decência, segurança, felicidade, tudo, para que o livro seja escrito".

Se essas considerações hiperbólicas soam pretensiosas a um aspirante a escritor, se apresentam com mais sabor quando ditas pelos que romperam a fronteira do anonimato literário. É o que surge à leitura de "Os escritores - As históricas entrevistas da Paris Review" (Companhia das Letras, 2 volumes), mais que um livro, um sorvete de flocos com pedaços de castanha.

A turma esta toda lá: Philip Roth, Vladimir Nabokov, T. S. Eliot, William Faulkner, Blaise Cendrars, William Burroughs, Anthony Burguess, Ezra Pound, Gabriel García Márquez, Jorge Luís Borges, Christopher Isherwood, Saul Bellow, Mariane Moore, Evelyn Waugh, Kurt Vonnegut Jr., E. M. Foster, Isak Dinesen, John do Passos, W. H. Auden, Gore Vidal, Henry Miller, Isaac Bashevis Singer, William Carlos Williams, John Cheever, Jack Kerouac, Georges Simenon, Jean Cocteau, Louis-Ferdinand Céline, Bernard Malamud, Milan Kundera, Ernest Hemingway, Nadine Gordimer, Dorothy Parker. As entrevistas formam um caldeirão de confidências, depoimentos, erudição, lugares-comuns, achados, vaidades, inteligência. Tudo deliciosamente disposto ao prazer intelectual. Foram publicadas originalmente na The Paris Review, que pretendia ser a revista intelectualizada mas agradável de se ler. Era a publicação feita por e para os americanos de Paris, nos conta o jornalista Sérgio Augusto, que prefacia a coletânea pincelando a história da publicação da segunda geração perdida que se tornou famosa pelas mais importantes, vivas e reveladoras entrevistas com escritores, poetas e intelectuais desde o primeiro número naquele ano de 1953.

"Os escritores - As históricas entrevistas da Paris Review" deve ficar sempre à mão, como aqueles livrinhos da sabedoria. Para consulta diária nos trechos que lhes causarem maior satisfação. Não se trata de um manual do escritor, mas os toques que tilintam pelas páginas ampliam a compreensão desse ofício tão invejado quanto doloroso. Faulkner é irresistível como entrevistado e Ezra Pound (1885-1972) divide com T. S. Eliot (1888-1965) o prato mais denso e gorduroso do menu. Mesmo assim, estimula a resposta de Pound sobre qual conselho daria aos jovens escritores: "Que aprimorem sua curiosidade e que não tapeiem. Mas isso não é o bastante. O mero registro de dor de barriga e o mero despejar da lata de lixo não são o bastante".

Um dos grandes sofrimentos de quem escreve é conciliar os estalos de criatividade, a necessidade e o tempo dedicado a escrever. Por isso, é bom saber que, apesar de Eliot estar num degrau superior da poesia, é possível ter uma rotina semelhante à dele. "Descobri que três horas por dia é mais ou menos o que consigo fazer, em termos de criação. Posso revisar, quem sabe, mais tarde. Às vezes eu tinha vontade de continuar, mas, quando olhava a coisa no dia seguinte, o que eu escrevera depois de terminadas as três horas nunca era satisfatório. É muito melhor parar e pensar em alguma coisa completamente diferente".

Pode-se encontrar no livro desde o processo de criação de cada escritor às suas veleidades, excentricidades e incertezas absolutas. Para Saul Bellow, o romancista tem que atravessar um território muito enlameado e barulhento antes de chegar a uma conclusão pura. Em relação aos poetas, disse, está mais exposto aos detalhes da vida. Já Jorge Luis Borges (1899-1986), ponderava que o escritor deveria ser julgado pelo prazer que proporciona e pelas emoções que se obtém, não por suas idéias políticas. Mas é inegável, porém, a importância de escritores engajados como Jean-Paul Sartre (1908-1980), na formação intelectual de parte de uma geração. Também encontrarão perguntas enfadonhas e entrevistadores que sabem muito e, por isso, querem dançar sobre o túmulo do interlocutor antes do cortejo, do velório, antes até mesmo da morte. Relevem. Compensa.

"Escritores" traz contrapontos, reflexões, sandices, provocações. "De vez em quando tenho em mente um leitor anti-Roth. Penso: 'como ele vai detestar isso!'. Esse pode ser exatamente o incentivo de que preciso", confessou Philip Roth. São provocações para reflexão e debate. Ou, simplesmente, para abrir janelas.

Assim, numa espiada mais detida, pode-se confirmar: quem escreve nunca é inocente. Nem deseja absolvição.

Bruno Garschagen
Cachoeiro de Itapemirim, 2/7/2002

 

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