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Terça-feira, 25/6/2002
Direito de Sentido
Evandro Ferreira


"Frankl apostou no sentido da vida e na força cognoscitiva da mente individual. Apostou nos dois azarões do páreo filosófico do século XX, desprezados por psicanalistas, marxistas, pragmatistas, semióticos, estruturalistas, desconstrucionistas - por todo o pomposo cortejo de cegos que guiam outros cegos para o abismo. Apostou e venceu".(1)

Pode-se dizer que Viktor Emil Frankl foi um bem-aventurado. Sobreviveu a uma das mais absurdas experiências a que seres humanos já foram submetidos por outros seres humanos, o campo de concentração. E como se isso não bastasse, ainda retirou dessa experiência todo um método terapêutico, a logoterapia. A partir da observação do cotidiano dos prisioneiros, entre os quais estava ele mesmo, foi capaz de erigir todo um sistema científico fundado em uma simples evidência empírica: o homem é capaz de manter viva a chama que o faz querer viver, mesmo diante das mais absurdas experiências de sofrimento e humilhação.

Em busca de sentido (2) é mais que um relato de atrocidades. É um esforço de compreensão psicológica da experiência do homem dentro do campo de concentração. O campo foi usado por Frankl como um cenário análogo ao da vida normal, mas exagerado até o limite do possível. Um lugar onde as pessoas sofrem de uma forma quase inimaginável e que, por isso mesmo, pode ser usado como uma prova fortíssima a favor da existência de um sentido na vida. Se o ser humano não fosse capaz de enxergar um sentido em sua vida para além de auto-ilusões criadas por sua mente, dificilmente haveria sobreviventes nos campos de concentração. É isso que Frankl quer mostrar: "O sentido da vida (...) é uma realidade ontológica, não uma criação cultural".(3)

Mas vamos por partes. O depoimento de Frankl se divide em três etapas, correspondentes aos três estádios da vida psicológica de um prisioneiro: a recepção no campo, a vida propriamente dita no interior daquele ambiente e, finalmente, a fase posterior à libertação.

A fase de recepção no campo é um desfazer-se de tudo, tanto de bens materiais como de esperanças de, por assim dizer, manutenção. O prisioneiro, pouco a pouco, vai percebendo que sua vida anterior acabou e que agora terá início uma outra, a da "existência nua e crua". Ele não possui mais nada, apenas seu corpo e uns trapos de roupa. É submetido, uma a uma, a experiências progressivamente adversas e desenvolve um espírito de humor negro e de curiosidade fria acerca do que acontecerá em seguida. Curiosidade essa definida por Frankl como uma retração da alma para salvar-se em um outro lugar. A lição que se tira então é a de que o ser humano se acostuma a tudo, embora não se saiba exatamente como.

Da primeira fase, salto à terceira, por motivos que se auto-evidenciarão mais adiante. Esta fase é a da vida após a libertação. Frankl observa que a reação do prisioneiro recém-liberto não é de alegria, como se poderia pensar, mas de lenta adaptação ao novo ambiente. As sensacões experimentadas vão da incrível amargura diante da indiferença dos outros em relação ao sofrimento vivido por ele no campo de concentração, até a decepção diante da constatação de que o sofrimento não tem um fim. O ex-prisioneiro descobre que pode-se sofrer também fora do campo, quando pensava que já havia sofrido o máximo que se pode conceber para uma vida humana. Mesmo tendo-se conscientizado, durante sua vida no campo, de que não há felicidade sobre a Terra capaz de compensar seu sofrimento, ainda assim ele não estava totalmente preparado para a infelicidade e precisa encará-la de frente.

Da segunda fase é que Frankl extrai, como seria de se esperar, as mais importantes observações existenciais sobre o ser humano. Como resultado direto do ambiente em que está inserido, o prisioneiro do campo de concentração desenvolve dois sintomas: a apatia e a irritabilidade. A apatia é uma "dessensiblização do íntimo" face às experiências a que se submete, como o constante espancamento, as pequenas humilhações e o assistir ao espancamento de outros. Em meio à massa de pessoas e diante do tratamento brutal e desumano por parte dos guardas, perde-se a sensação de ainda ser sujeito humano e a vida psíquica recua a um nível primitivo, em que o sujeito passa a se preocupar apenas com pequenos eventos e necessidades momentâneas. Todo esse estado psíquico causa o anseio de submissão do prisioneiro às mãos do destino, tão cansado está ele de tomar - a todo momento - decisões que podem significar enormes sofrimentos (e até, naturalmente, a morte), como, por exemplo, se sobe ou não em um caminhão que pode tanto estar indo a um campo menos cruel como em direção ao extermínio.

A partir dessas observações, entretanto, Frankl retira a constatação primordial de que, nos momentos mais adversos, o homem revela-se como um ser que está acima das determinações de seu meio. É certo que apenas uma minoria de prisioneiros se revelou capaz de superar as condições psíquicas impostas pelo ambiente e voltar-se para a vida interior que se apresentava como oportunidade a ser tomada. Mas ainda que fosse apenas um ser humano a fazê-lo, a constatação seria igualmente válida: existe um sentido e uma dimensão espiritual no ser humano, para acima de seus elementos psíquicos estruturantes. Desse modo, Frankl afirma a individualidade de cada ser humano e sua capacidade de exercer uma liberdade interior que se revela no encontro de um sentido para cada situação vivida, inclusive as de sofrimento mais absurdo. Isso significa dizer que cada ser humano tomado individualmente é que decide em que vai-se transformar interiormente diante das situações que vive. É esse o significado mais profundo de liberdade e, ao mesmo tempo, a mais bela prova de que existe um sentido para a vida. Em última instância, "aquilo que sucede interiormente com a pessoa, aquilo em que o campo de concentração parece 'transformá-la', revela ser o resultado de uma decisão interior. Em princípio, portanto, toda pessoa, mesmo sob aquelas circunstâncias, pode decidir de alguma maneira o que ela acabará sendo, em sentido espiritual: um típico prisioneiro de campo de concentração, ou então uma pessoa humana, que também ali permanece sendo ser humano e conserva a sua dignidade".(4)

O que há de mais interessante nessa constatação de Frankl de que o homem está acima de seu meio é o fato de que ele não a alcançou através de uma teoria. Sua prova é empírica. A dimensão ontológica do sentido da vida é um fato empiricamente comprovado. Em outras palavras, a própria observação da vida dos homens no mundo mostra que o ser humano é naturalmente capaz de encontrar o sentido de sua vida, e isso já é prova suficiente de que esse sentido existe. Desse modo, Frankl "salta" a filosofia (mais particularmente a ontologia) e chega do outro lado para nos mostrar que a coisa é bem mais simples do que se poderia pensar. Ao mesmo tempo, desabam todas as formas coletivistas do conceito de liberdade, incompletas que são diante do sentido espiritual desse valor ético primordial.

A liberdade se apresenta então, diante do destino, como a prova de que o sentido da vida estava a esperar por nós todo o tempo. Enquanto estávamos preocupados em perguntar à vida qual é o seu sentido, este se revela de modo oposto. A vida está a nos perguntar permanentemente. Ela espera algo de nós a todo momento. E espera o quê? Precisamente que tomemos uma decisão livre e responsável diante de cada situação que nos é dada. O sentido está em todo lugar, como possibilidade concreta. Nós não o fabricamos, apenas o descobrimos no momento mesmo em que realizamos nossa liberdade individual de escolher o que nos tornaremos a cada momento.

Mas a liberdade diante do destino não consiste na realização de ações no mundo ou na insubmissão a esse destino. Não é disso que depende o sentido da vida. Uma pessoa, diante da vida, pode encontrar sentido em qualquer situação, pois ela é chamada a isso: "Em dado momento, a sua situacão concreta exige que ela aja, ou seja, que ela procure configurar ativamente o seu destino; em outro momento, que ela aproveite uma oportunidade para realizar valores de vivência (por exemplo, sentindo prazer ou satisfação); outra vez, que ela simplesmente assuma o seu destino. Mas sempre é assim que toda e qualquer situação se caracteriza por esse caráter único e exclusivo que somente permite uma única 'resposta' correta à pergunta contida na situacão concreta".(5)

Nestes tempos de revolução cultural em que vivemos, muitos perguntarão: mas é só essa a liberdade que temos? Sim e não. Algumas vezes sim e outras não. O fato é que as pessoas têm estado tão preocupadas em ser livres, que acabaram perdendo sua liberdade e se tornando escravas de uma busca inútil por algo que já se tem. Transformar o mundo pode parecer exercício de liberdade, mas a realidade é bem outra: quanto mais rapidamente transforma o mundo, menos liberdade tem o ser humano, pois acaba preso em um ciclo interminável de mudanças que passam a exigir outras em uma sucessão infinita de eventos. Diante do mundo das políticas revolucionárias e "libertadoras", irmãs gêmeas da tecnologia e da competitividade a qualquer preço, só resta então o indivíduo como o percebeu Viktor Frankl, exercendo sua pequena grande liberdade, que é simplesmente o direito que ele tem - e que ninguém lhe pode tirar - de encontrar o sentido de sua própria vida.

Notas
1. Olavo de Carvalho, O imbecil coletivo II. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998, pp. 150.

2. Viktor Frankl, Em busca de sentido: um psicólogo no campo de concentração. Petrópolis: Editora Vozes, 1991.

3. Olavo de Carvalho, op. cit., pp. 148.

4. Viktor Frankl, op. cit., pp. 67.

5. Viktor Frankl, op. cit., pp. 76.

Evandro Ferreira
Belo Horizonte, 25/6/2002

 

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