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Sexta-feira, 28/6/2002
Comédias leves
Alexandre Soares Silva

Às vezes me parece que o estado ideal da mente é o de uma comédia leve; que deveríamos meditar para atingir esse estado, como um monge zen medita para atingir o estado de iluminação. É um estado não só leve como um pouquinho zonzo. E vagamente espumante, como se bolhinhas de champanhe tivessem subido para o cérebro, e estivessem borbulhando lá, entre o cerebelo e o tampo do crânio. Se alguém subisse num banquinho, ouviria a sua cabeça chiar.

Essa não é uma escolha óbvia para um estado ideal da mente – alguém poderia preferir o de uma comédia mais pesada, algo como um permanente estado satírico da mente, que é um estado mais crítico, mais amargo, menos achampanhado e com mais tanino. Ainda por cima, o estado satírico dá o grande prazer da agressão – o prazer de sair pelas calçadas dando chutes em quem, por exemplo, fala alto, ou simplesmente é feio. Confesso que às vezes esse estado mental me tenta – que é o meu estado natural, até - mas ainda prefiro o estado mental das comédias leves.

(Coloquemos a diferença assim: na sátira você quer dar pancadas; na comédia leve você quer dançar.)

Há também quem prefira viver no estado mental de uma tragédia. Há muita gente assim andando nas ruas, presos mentalmente num filme triste, ou num filme sórdido; em Pixote, ou naqueles cinco minutos sublimes de um certo filme – o ápice do cinema brasileiro, por assim dizer - em que Lucélia Santos abraça um poste debaixo da chuva, gritando “Me come, negão! Me come, negão! ” para um bando de mecânicos sem camisa. Que alguém voluntariamente queira ficar preso nesse estado de espírito me parece incrível, mas há. E o que é característico nesse tipo de gente é que eles nunca acham que é só um estado mental, voluntariamente sintonizado. Eles acham que o universo é que é assim, objetivamente assim: um ferro-velho debaixo da chuva, em que Lucélia Santos é perpetuamente estuprada por gente feia. Da minha parte prefiro acreditar que o universo é assim: James Stewart acordando e vendo o rosto de Grace Kelly se aproximando dele, em Janela Indiscreta; Maurice Chevalier cantando Thank Heavens for Little Girls, num parque parisiense, em Gigi. Posso estar enganado, e acabar cercado por um bando de negões num ferro-velho (epa*). Mas pelo menos até esse momento eu não estava, mentalmente, no ferro-velho – estava em Cannes ou Biarritz com Grace Kelly. (Ela pediu pra dizer olá.)

A seguir escolhi três autores de comédias leves, dos quais talvez você não tenha ouvido falar, ou saiba pouco. Se esse é o caso, sorte sua – é como se você de repente descobrisse três portas dando para três jardins, onde antes não tinha visto porta nenhuma:

1) P.G.Wodehouse (1881-1975) – Mais conhecido como Plum , para os aficionados. Você já deve ter ouvido falar de Jeeves, o mordomo – pois foi Wodehouse (pronuncia-se Woodhouse) que o criou e o manteve vivo em 11 romances e 33 coleções de contos. Jeeves na verdade é o valet de chambre, e não o mordomo, do venerável Bertie Wooster, que é um cabeça-oca simpático que depende de Jeeves para tudo. Já Jeeves é um intelectual, que cita Keats e lê Spinoza na cama (tenho a teoria que ele é o verdadeiro pai de Hannibal Lecter, mas essa é outra história). No mundo de Wodehouse, coisas como trabalho, impostos, doenças e morte não existem, e o maior problema da vida é a iminência da chegada de uma tia furiosa, ou a dificuldade de praticar banjolele (misto de banjo e ukelele) sem ser expulso do edifício. Naturalmente, é sempre Jeeves que resolve os problemas do seu inofensivamente idiótico patrão.

O melhor de Wodehouse é o estilo . Foi muito admirado tecnicamente por Evelyn Waugh, que era outro mestre da língua e admirava muito pouca gente. Wodehouse faz rir com as gírias antigas, inventadas ou não, que Bertie diz, e a precisão da linguagem. Por isso não vale muito a pena lê-lo em tradução, se você encontrar uma. Se esforce, leia Wodehouse no original – ele foi um dos autores mais engraçados de todos os tempos, se não o mais. Pessoalmente era tímido, gentil, e um pouquinho chato. Escreveu noventa e tantos livros. Li oito: lendo num ritmo de uns cinco livros dele por ano, fico feliz de ainda ter uns dezesseis anos de leitura pela frente; e outros tantos de releitura.

2) Amy Sherman-Palladino – É a escritora e produtora da série Gilmore Girls. Mrs. Palladino, que é relativamente jovem, se orgulha de ser na verdade um “cômico judeu de 80 anos”; o diálogo que ela escreve é um dos melhores da tevê: inteligente, engraçado, e rápido como o diálogo de uma screwball comedy (tão rápidos e incessantes que os roteiros têm, em média, vinte páginas a mais do que os de outros shows de uma hora). Oh, a série em si é um tanto bobinha: mãe linda e filha adolescente são as melhores amigas uma da outra, e vivem numa cidadezinha bucólica nos EUA, Stars Hollow, em que o pior crime que é cometido é alguém ter vandalizado um boneco de neve, e onde ninguém é mau, no máximo um pouquinho chato. Na verdade desconfio que naquele universo o mal nem mesmo existe – só uma espécie de mau-humor engraçado. Quando desligo a tevê depois de ver Gilmore Girls, me pergunto por que a vida não pode ser assim.

Lorelai e Rory Gilmore

Basicamente, a série é sobre o prazer que mãe e filha têm em zombarem juntas de todo mundo; e zombar a dois é tão melhor que zombar sozinho. E há Lauren Graham, a mãe da filha adolescente, que é uma dessas mulheres (que existem) que não são tão lindas assim caladas, mas que quando começam a falar ficam (oh, pelo menos para mim) inacreditavelmente maravilhosas. – Gilmore Girls- Warner Channel- Quintas às 20:00 e 1:00, reprises nos sábados às 17:00 e 23:00.

3) Georges Feydeau (1862-1921)– Foi um francês que escrevia peças cômicas, de vaudeville. Escreveu 39 delas; as mais famosas são la Dame de chez Maxim (1899), la Puce à l’oreille (1907) e Occupe-toi d’Amélie (1908). Levou uma vida longa e divertida e sifilítica **. Oh, é claro que ninguém leva Feydeau a sério hoje em dia, e por dois motivos: porque suas peças são engraçadas, e porque suas peças são bem-feitas. Críticos sérios preferem autores sombrios e desleixados. Estou pensando no irlandês Samuel Beckett ao dizer isso; suas peças têm lá alguma técnica, principalmente no ritmo dos diálogos, mas isso não é nada comparado ao ritmo preciso de Feydeau. Você tem que ter ritmo em comédia, ou ninguém ri – é simples assim. Mas Feydeau, ao contrário de Beckett, não construiu uma filosofia do desespero e da incomunicabilidade humana e de todas essas idiotices profundas; o mais próximo que ele tinha de uma visão de mundo era a noção francesa de que adultério é divertido. Pensando em Beckett e Feydeau, digo isto:

É um mistério
Aquele autor irlandês,
Tristonho e sério,
Que escrevia em francês:
Não escreveu “La Puce...”, mas “Godot”;
Foi Beckett - podendo ser Feydeau...


Mas as peças de Feydeau nunca deixam de ser representadas – especialmente “Uma Pulga Atrás da Orelha” (La Puce à l’oreille), La Dame de chez Maxim e L'Hotel du Libre Echange, que virou um filme bastante engraçado com Alec Guiness e Gina Lollobrigida (em 1966, com o nome de Hotel Paradiso). Acho que ele merecia mais respeito, mas ao fim e ao cabo ele não é tão desprezado assim – já foi chamado de “o Bach do seu gênero” pelo crítico e tradutor Norman R. Shapiro, e de “o maior autor cômico desde Molière” pelo escritor Marcel Achard.

Direta ou indiretamente, influenciou vários autores de sitcoms; no mínimo indiretamente – ele e o autor cômico inglês Arthur Pinero influenciaram autores cômicos novaiorquinos, na maioria judeus, que migraram dos palcos para o rádio, do rádio para a tevê ( pense em Larry Gelbart, que fez justamente essa transição do rádio para a tevê, onde escreveu vários episódios de M.A.S.H.). Sitcoms, como sonetos parnasianos, como arquitetura gótica, e como as peças de Feydeau, são formas de arte inacreditavelmente exigentes; exigem longo aprendizado, grande talento, grande esforço. Não tenha dúvida que os escritores modernos de sitcoms estudam Feydeau como se ele fosse uma autoridade talmúdica; e da próxima vez que achar graça do que Jeniffer Aniston diz em Friends, ou do que Seinfeld diz em Seinfeld, perca dois segundos para dizer mentalmente Merci, Georges, que não custa nada.

Para concluir
Isso talvez seja uma boa definição para fé: acreditar que a vida não é uma peça de Nelson Rodrigues; que esteja mais perto de uma comédia leve. Se o pior acontecer, e finalmente você se encontrar cercado por mecânicos barrigudos num ferro-velho, há pelo menos esta consolação: que ao contrário do pessimista você não esteve sempre ali, debaixo daquela chuva, se preparando para o pior. Não há modo de se preparar para o pior; você e o pessimista vão passar pela mesma sórdida experiência juntos; mas o pessimista cresceu ali, nunca saiu dali, enquanto você cresceu num filme de Lubitsch ou num livro de P.G. Wodehouse.

Ou esta definição alternativa de Graça Divina: que a Graça é a chuva parando, a Lucélia Santos desabraçando o poste, sendo transportada do ferro-velho para uma mansão em Connecticut, se tornando Audrey Hepburn e sendo perseguida, agora, ao longo de um caminho de cascalho, por Cary Grant - que quer dar umas palmadinhas nela com uma raquete de pingue-pongue.

Continuando a metáfora
E sim, tenho certeza que, depois da morte, iremos para uma comédia de Lubitsch, perpetuamente projetada lá nas nuvens...



*- “E-P-A” - com “P”, não com “B”...[Volta]

**- (sífilis não deve ser divertida, suponho. Mas dizem que a vida que leva a ela é).[Volta]

Alexandre Soares Silva
São Paulo, 28/6/2002

 

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