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Sexta-feira, 5/7/2002
A Soma de Todos os Medos
Gian Danton

Acabei de assistir ao filme A Soma de Todos os Medos. A película só confirma uma suspeita que eu tinha há tempos: a paranóia é a doença do século. Segundo o dicionário, paranóia é uma doença mental em que a pessoa se sente perseguida. O paranóico sente que há alguém vigiando seus passos, um inimigo em cada esquina.

É exatamente assim que nos sentimos ao assistir ao filme estrelado por Ben Affleck e Morgan Freeman: um grupo de neonazistas consegue uma bomba atômica e a detona nos EUA, fazendo que o governo americano acredite que foi a Rússia e iniciando a Terceira Guerra Mundial. Mesmo ao final, quando tudo está resolvido, temos a impressão de que os passos do personagem principal (um historiador a serviço da CIA) são vigiados a todo instante.

A Soma de Todos os Medos não é um caso isolado. São incontáveis os filmes que têm como atrativo justamente esse sentimento paranóico de que uma conspiração que irá afetar a vida de todos nós está ocorrendo neste exato momento. O seriado Arquivo X baseou toda a sua popularidade na exploração da paranóia coletiva. Aliás, o próprio nome do seriado parte do princípio de que há uma pasta no FBI de investigação de assuntos sobre os quais a maioria das pessoas não têm qualquer conhecimento: Invasões alienígenas, experimentos governamentais, planos para controlar a mente....

O sentimento paranóico de que estão nos escondendo algo fundamentou até o posicionamento ideológico de uma parte da esquerda, que acredita em um grande monstro que domina todos os meios de comunicação de massa para transformar a população numa massa amorfa e acrítica. Boa parte dos herdeiros da Escola de Frankfurt seguiram essa linha, sem falar nos partidários da teoria dos aparelhos ideológicos do estado...

Até mesmo o diabo é acusado de ser o responsável por conspirações.

Um amigo meu, professor de pós-graduação em São Paulo, me conta que uma aluna sua era professora de educação artística em Cubatão. Em uma das aulas ela resolveu fazer um relaxamento com as crianças e, para isso, tocou uma música de Vivaldi. As crianças que eram filhas de evangélicos disseram aos pais que ouviram, no meio da música, a voz do demônio. Os pais tentaram destruir a escola e a professora teve de sair do local com a ajuda da polícia.

Aqueles pais que, com paus e pedras, tentavam linchar a professora sofriam da mesma doença daqueles que acreditam que Elvis não morreu, ou que Roberto Marinho inspeciona pessoalmente cada segundo da programação da Globo: paranóia. Mas não é um tipo qualquer de doença mental. É uma paranóia coletiva, que acomete grandes quantidades de pessoas.

Sabemos que os meios de comunicação de massa são apenas os sintomas disso, o veículo através do qual o inconsciente coletivo se manifesta. Daí a importância de estudar a maneira como a mídia exibe essa paranóia. Os filmes, histórias em quadrinhos e seriados são, para as massas, o que é o sonho para os indivíduos. É através deles que a grande mente coletiva se manifesta.

Basta uma olhada para o século XX para percebermos que esse sentimento de paranóia se justifica por vários fatos históricos. Não é à toa que no filme A Soma de Todos os Medos o inimigo oculto são os nazistas. O nazismo foi o paradigma político do século passado. Ao longo de 100 anos, muitas nações sofreram sob o julgo de estados ditatoriais. Na década de 70, por exemplo, quase toda a América Latina foi governada por ditaduras militares.

Minha avó, que passou pela ditadura de Vargas e dos militares, costumava pedir para que abaixássemos a voz quando conversávamos sobre política. Segundo ela, as paredes têm ouvidos. Não, ela não tinha qualquer envolvimento político e nunca foi presa, mas ainda assim desenvolveu a paranóia. Sabe-se que muitos presos políticos da época da ditadura se tornaram paranóicos, mas o problema se torna realmente chocante quando percebemos que até mesmo as pessoas apolíticas são acometidas pelo mal do século.

O nazismo e as violentas ditaduras do século passado (como a de Pinochet, no Chile, local em que toda família teve alguém preso e torturado) causaram um trauma no inconsciente coletivo. Afinal, a democracia parte do princípio de que todas as ações governamentais são transparentes e visam o bem comum. Apenas na ditadura os governantes agem às escondidas, com motivos escusos. Esse medo inconsciente da volta dos estados totalitários e ditatoriais são expressos através de seriados como Arquivo X e filmes como A Soma de Todos os Medos.

É um medo muitas vezes irracional e muitos poderão argumentar que se trata de uma volta ao irracionalismo da Idade Média. E é exatamente isso. O século XX demonstrou que o racionalismo modernista pode nos levar a episódios como a solução final dos nazistas (quem acha que Hitler era um louco irracional deveria assistir ao filme A Arquitetura da Destruição) e à bomba atômica. A conseqüência dessa percepção foi uma volta ao irracionalismo supersticioso da Idade Média. Na Idade Média as pessoas temiam o desconhecido e se protegiam fechando-se em pequenas comunidades. O diferente era visto com desconfiança e os males do mundo eram imputados a ele. Quando uma peste infestava uma localidade, por exemplo, era comum seus habitantes matarem alguns judeus por considerá-los responsáveis pela calamidade. É um fenômeno semelhante ao fundamentalismo religioso dos talibãs e dos evangélicos que tentam linchar a professora que toca Vivaldi para seus filhos. Num mundo dominado pela paranóia, qualquer um que faça algo diferente pode ser o inimigo, razão pela qual tudo que é novo deve ser visto com desconfiança.

Se já não bastassem todos os estímulos para essa paranóia coletiva, ainda tivemos 11 de setembro. O que, senão uma paranóia coletiva, pode explicar que um grupo de americanos linchem um brasileiro pensando que ele é árabe? Que diferença tem esse episódio dos massacres da Idade Média? É possível que a paranóia coletiva nos leve a uma nova Idade das Trevas? Para saber isso, tudo que podemos fazer é acompanhar a evolução da doença. E os sintomas estão aí, nos meios de comunicação de massa.

Gian Danton
Macapá, 5/7/2002

 

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