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Quarta-feira, 10/7/2002
Saudosismo
Rennata Airoldi

Há coisas que acontecem em nossas vidas que nos fazem parar e repensar muitos conceitos e certezas já definidas. Há encontros que nos modificam e provocam de uma nova forma nosso olhar diante de certos aspectos. E, assim, paramos o tempo e em questão de minutos revivemos anos, recordamos e nos permitimos algumas mudanças. Às vezes, é preciso olhar para trás e reencontrar o que perdemos no caminho. Metáforas, analogias, tudo pode significar muito ou pouco, depende da apropriação e do entendimento.

Hoje não escrevo sobre um espetáculo qualquer. Escrevo sobre o maior deles, a vida. Ela que faz de nós todos um pouco atores. Cerca de duas semanas atrás, tive o prazer de participar de uma oficina de Investigação Teatral para atores com o diretor Luiz Valcazaras. Devo dizer que fui "pega de calças curtas". Sabe quando você começa a fazer algo e é surpreendido? Esta sensação é maravilhosa. Na verdade, esta oficina me fez refletir sobre muitas coisas. Sobre o início. Sobre minhas raízes e meus sonhos. Quando surgiu a arte em minha vida, como ela se apresentou e se manifestou em mim. E ao mesmo tempo, como o simples ato de contar uma história pode transmitir tantas sensações e conquistar tantos olhares. Não sou uma narcisista que olha apenas para seu próprio umbigo e fica falando de si aos quatro ventos. Mas é que, na verdade, as minhas experiências são parecidas com as de muitos atores que, como eu, se encontraram muito cedo com a arte.
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O N.I.T (Núcleo de Investigação Teatral) fundado e dirigido por Luiz Valcazaras tem sede em Londrina. Os atores do N.I.T. desenvolvem uma investigação sobre o trabalho do ator sem um método definitivo. Tudo está em constante evolução, movimento. Sempre há novas descobertas a serem feitas. Grande parte da loucura desta investigação está no "contar histórias". No fato de que, partindo de qualquer ponto no espaço, uma história pode ser contada e, a partir dela, muitos pontos de vista podem ser estabelecidos. O que é simples e sutil ao mesmo tempo traz consigo uma sofisticação imensa. A princípio parece brincadeira de criança, mas é muito mais que isso. E o resultado cênico é de extrema delicadeza. Enquanto atriz e espectadora, pude comprovar a grandeza e a complexidade dessa investigação, que parte de uma "sementinha" muito conhecida por todos nós.

Somos todos contadores de histórias! Algumas pessoas têm este talento mais acentuado, outras menos. Talvez o ato de contar histórias, fábulas, "causos", esteja se perdendo no corre-corre das cidades. Mas eu, que venho do interior, que cresci em meio a avós e pais que vieram de um "interior mais interior" ainda, tive a felicidade de participar de grandes rodas onde as histórias eram contadas. Após o almoço em família havia sempre uma roda onde todos conversavam e sempre alguém, protagonizando a cena, contava um caso ocorrido em algum dia passado. Risos, comentários, brilho nos olhos. De um encontro para o outro, a mesma história podia ser contada duas, três vezes, soando sempre muito interessante.

Assim, enquanto crescia, decidi igualmente contar histórias. Quando era criança, porém, tudo acontecia instintivamente, como numa brincadeira. Um jogo lúdico sem conceitos ou referências estabelecidas. Aliás, o espontâneo é muitas vezes o que nos falta depois de anos de estudo. Desta forma, reunia minhas "coleguinhas" e ia brincar de fazer teatro. Brincar de se transformar a cada dia numa nova figura. Viajar entre histórias e mundos inatingíveis! E, depois, receber os aplausos calorosos da família que pacientemente assistia a tudo com o único intuito de prestigiar.

Tempo que não volta. Saudade. Foi assim, numa breve oficina de teatro que estes devaneios vieram à tona e descobri que este sentimento saudosista pode ser muito positivo. Às vezes, quando queremos traduzir alguma coisa para nossa profissão, estudamos, buscamos livros e, de repente, é só olhar para trás. Ver que, nos momentos em que meus avós contavam as histórias dos engenhos e das fazendas, existia uma comunhão entre todos, e ali se estabelecia um código entre o "contador da história" e todos nós, os espectadores.

A realidade é que é muito difícil contar uma história. Prender a atenção de muitas pessoas apenas com um olhar, com pausas e gestos. Por outro lado, com estes "contadores informais", podemos tirar a centelha dessa chama que temos que transportar junto a nossos personagens. É no palco que tudo deve ser crível, por mais absurdo que possa parecer aos olhos da realidade. O lúdico da criança que começa a se interessar pela brincadeira de "faz de conta" é essencial. E, no teatro, a cada dia temos que repetir a mesma história de maneira tão verdadeira como se fosse a primeira vez. Como se os fatos estivessem acontecendo no aqui e agora.

Claro que, a partir de uma investigação pessoal, o ator deve buscar seus próprios impulsos internos, suas referências, suas raízes. Todos temos um pouco desta arte de contar histórias. O que acontece é que não basta saber contar histórias para a família ou para os amigos, para ser ator. Mas esse "pequeno- grande" ato, se bem aproveitado, pode ser determinante para o ator em cena. Constatar e experimentar tudo isso me fez viajar no tempo, nos sentidos, no meu percurso.

Desta forma, falo também por todos nós, seres humanos. Às vezes, não nos reconhecemos naquilo que realizamos. Simplesmente, fazemos. Sem saber porque ou como, mecanicamente, agimos. Não importa a profissão, isso acontece com todos. Resolvi escrever esta coluna para que todos, por um momento, olhassem para trás...

Reveja a sua infância, os momentos determinantes de sua escolha. Reveja esse filme, olhe para o seu caminho até chegar no dia de hoje. Tente resgatar essa criança e, mais importante, esse seu olhar de criança. O brilho de quando se descobre uma mina de ouro, a cada dia! Nós adultos somos muito sem graça. Não sabemos mais brincar de faz de conta! Não aceitamos o lúdico em nosso dia-a-dia.

Com isso, as pessoas assistem um filme, uma peça, ouvem uma música, dançam mas não se permitem ser tocadas pela ARTE. Não se deixam modificar. É preciso estarmos atentos àquilo que está diante de nós, para que algo possa nos surpreender, nos ensinar e nos fazer refletir. Permita-se mudar de estado feito a água! Seja um pouco líquido, um pouco volátil e, quando necessário, seja rígido também! Mas não se deixe solidificar no tempo, no espaço. Tenha saudade mas olhe para frente, sempre!

Nota Importante
Ontem, dia 9 de julho começou a "II Mostra de Teatro - Cemitério de Automóveis". Para se ter uma idéia: são 26 peças, 79 atores e vinte anos de grupo. É, sem dúvida, o maior acontecimento do Teatro Paulistano deste ano. Não perca! As peças acontecem de terça à domingo. Para saber mais sobre a programação, não deixe de acessar o site: www.cemiteriodeautomoveis.hpg.ig.com.br.

Rennata Airoldi
São Paulo, 10/7/2002

 

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