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Sexta-feira, 12/7/2002
Samurais de Fecaloma
Alexandre Soares Silva

Em 1983, um professor de literatura americano chamado Paul Fussell publicou um livro sobre um assunto "cuja simples menção", disse ele, "enfurece as pessoas hoje em dia": classes sociais. O livro se chama Class- A Guide Through the American Status System, e é tão engraçado (e tão perspicaz) que eu não poderia recomendá-lo mais. Fussell divide a sociedade americana em nove classes, e as descreve minunciosamente - roupas, pronúncia, decoração, etc- e ridiculariza todas elas. Há detalhes muito interessantes. Em um capítulo, por exemplo, ele diz que a marca distintiva do proletário disfarçado de classe alta é um certo vão entre o colarinho do terno e o pescoço: "...always a prole giveaway. Here, the collar of the jacket separates itself from the collar of the shirt and backs off and up an inch or so: the effect is that of a man coming apart" ("...sempre um sinal distintivo dos proletas. Nele o colarinho da jaqueta se separa do colarinho da camisa, e vai pra trás e pra cima uma polegada: o efeito é o de um homem caindo aos pedaços"). Em outro capítulo, Fussell diz que, em matéria de jogos, as bolas diminuem à medida que a classe sobe: basquete é um jogo proletário, futebol americano o jogo de uma classe um pouquinho acima, beisebol ainda mais acima, e tênis e golfe atingindo o topo.

Mas o trecho que eu queria citar diz respeito a executivos, que são o assunto deste texto. Fussell está falando sobre a classe média e seu esforço em se distinguir da classe baixa: "...the men treasure having a genteel ocupation (...) with emphasis on the word (if seldom the thing) executive. (As a matter of fact, an important class divide falls between those who feel veneration before the term executive and those who feel they want to throw up)".["...os homens fazem questão de ter uma profissão elegante (...) com ênfase na palavra (mesmo se não a coisa em si) executivo. (Na verdade, uma importante linha divisória de classe separa aqueles que sentem veneração quando ouvem o termo executivo e aqueles que sentem vontade de vomitar")]. Isso é algo que muitas pessoas não conseguem entender, porque para elas um executivo é o topo do topo, para além do qual não se enxerga nada; e se alguém quer vomitar ao ouvir falar de executivos, é por inveja; ué, o que há acima de um executivo? Muita coisa, digo eu. Mas digo mais: que os próprios executivos reconhecem isso de um modo quase embaraçoso. Eles sentem que não é suficiente ser um simples hominho num terno. E é por isso que vivem se comparando com guerreiros.

Já no século dezenove se usava o termo "capitães da indústria" para donos de empresa e seus gerentes mais altos. A idéia era que a fábrica era uma espécie de navio de guerra, e o "capitão de indústria" se fazia pintar com o peito estufado, barriga encolhida, maxilar projetado, bigode encerado e um globo por perto, onde sua mão viril casualmente repousa. Longe dele dizer que é simplesmente o que é; a atitude era decididamente militar. Isso já vinha de longe: os encarregados de provisões para a Marinha Real britânica nos séculos XVIII e XIX (homens que não saíam dos portos) afetavam ser lobos do mar e eram ridicularizados por isso. Mas o tempo passou, e as pessoas passaram a levar a farsa a sério.

A primeira vez que percebi isso foi vendo Wall Street - o filme no qual Michael Douglas é um super-yuppie chamado Gecko que lê passagens do clássico A Arte da Guerra, de Sun Tzu. Se você entrar numa livraria agora e pedir esse livro, vai ser difícil encontrar alguma edição que não seja voltada para o público vagamente débil mental dos executivos - que nunca teriam paciência, por exemplo, para ler as centenas de páginas de Sobre a Guerra, o clássico militar de Clausewitz. Não, eles preferem livros fininhos como o de Sun Tzu, ou como o livro do grande samurai Miyamoto Musashi, O Livro dos Cinco Elementos. Minha própria edição desse livro tem o subtítulo idiota de "A Estratégia de Vencer Sempre". Mas duvido muito que Musashi se dignasse a falar com um executivo. Acho que rosnaria.

Uma busca simples na Internet revela centenas de cursos e livros para executivos com títulos como Despertando o Samurai Dentro de Você! , Dez Coisas Que Gengis Khan Me Ensinou, e outras patetices do gênero. Pior: os próprios mestres de artes marciais (e generais de verdade como Colin Powell!) se aproveitam do interesse dos executivos e diminuem suas artes ao nível da auto-ajuda, ensinando a "atingir os seus objetivos como um autêntico guerreiro".

Mas e daí? Não é um hábito inofensivo? Não são só pessoas que levam vidas tediosas e se imaginam como guerreiros para aguentar levar a vida que levam? Talvez. Mas o problema, me parece, é que na verdade executivos não só não são guerreiros, como são o oposto de guerreiros. O orgulho de um guerreiro é triplo: orgulho de sua habilidade, de sua lealdade, e principalmente de sua coragem. Um executivo pode ser hábil lá na chatice que ele faz; duvido um pouco que seja leal; mas corajoso é justamente o que ele não é. Um executivo é justamente alguém que quando jovem escolheu o caminho que parecia mais seguro e cheio de conforto. Nisso está junto com pessoas que fizeram economia ou computação (ao contrário de, digamos, museologia) - escolheram o caminho que lhes parecia mais longe das balas de canhão. Mais tarde na carreira passam a ouvir algumas explosões, e reclamam muito do "estresse". Mas também não consigo imaginar Miyamoto Musashi reclamando de estresse. O perigo que ele enfrentava não era simbólico; era a morte. Não era o risco de perder o plano dentário; era o risco de, num golpe de espada, perder os dentes todos, e o queixo junto com eles.

Quando Lord Nelson morreu, foi por se recusar a se esconder no deque do seu navio. Durante toda a batalha de Trafalgar ele usava um uniforme vistoso, e as balas dos snipers franceses passavam perto da sua cabeça. Ele continuou na amurada do navio, ereto, sem sequer se curvar a cada tiro que ouvia; até que uma bala o matou. Há algo de profundamente ofensivo em comparar executivos com uma pessoa assim. Executivos estariam no porão, sentados nas batatas, reclamado de estresse e escrevendo cartas furiosas ao almirantado. O que chamam de coragem é justamente escrever cartas furiosas e aguentar as consequências. No intervalo de uma carta e outra, levantam e dão golpes com espadas imaginárias nas batatas, e se chamam de samurais e de guerreiros.

Será que não é a hora dos executivos, desenxabidamente, reconhecerem que são aquilo que são mesmo: sob luzes fluorescentes, homens em ternos feios?

Alexandre Soares Silva
São Paulo, 12/7/2002

 

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