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Segunda-feira, 7/5/2001
Sobre o ato de fumar
Rafael Lima

Pra começo de conversa, nem todo mundo fuma por vício. Há vários segredos e motivos ocultos por trás dos anéis cinzentos. Tomemos o filme Cortina de Fumaça, como exemplo. Quase todos os personagens fumam, pelos mais variados motivos. Auggie Wren fuma cigarros comuns em sua drugstore por costume. Paul Benjamim, escritor, busca inspiração em finas cigarrilhas. Cyrus Cole, mecânico de automóveis, fuma seu charuto de grosso calibre para relaxar após um dia de trabalho duro. Ruby queima seus cigarros para descarregar a tensão. Felicity traga um baseado pra se esquecer de sua vida de cão. Cortina de Fumaça, no entanto, não é um filme sobre o fumar e suas variações, como seu título poderia sugerir. Mas nele, com na vida real, as pessoas fumam -- é um fato. As pessoas fumam e gostam disso, mesmo que não lhes faça bem. Quem diz é o escritor Paul Auster, autor do roteiro do filme.

Mas por que algo tão humano e comum como fumar têm sofrido uma perseguição tão grande? No período anterior ao da descoberta da nicotina como causadora de câncer fumar não só era comum como um ato revestido de glamour, requintado e elegante. Porque o fumar não é apenas o sorver da fumaça (assim como o comer não é só o mastigar-digerir), mas toda uma série de gestos, hábitos e poses que altera o comportamento do fumante -- e, por extensão, do não fumante -- nas coisas mais banais. Como aquele amigo cara-de-pau que não fuma mas anda sempre com um Zippo no bolso, à espera do infalível "tem fogo?". Ruy Castro atesta: "Ninguém é inocente ao fumar".

Absolutamente explorado na época áurea de Hollywood, o cigarro parecia imbuir de leveza um dançarino como Fred Astaire, adicionar virlidade a um Bogart ou construir inseparavelmente a aura intelectual de um Sartre (tudo bem, Sartre não era hollywoodiano mas ajudou o cigarro a adquirir seu status). Apesar de não existir sem um fumante, o cigarro criou identidade própria. Mas nem sempre foi assim.

O tabaco já era conhecido e usado pelos índios quando Colombo veio com seus espelhinhos. E asim como o café, foi vendido ao velho mundo como mais uma maravilha da nova terra, revigorante, desintoxicante, saboroso, tonificante e até milagroso. As cartas dos Pero Vaz de Caminha da época são de envergonhar qualquer ativista. Mas afinal, porque os índios fumavam, se não havia indústria nem comerciais na televisão com cavalos e camelos? "Não era pecado... devia ficar alegre, sempre alegre e esse era um gosto inocente, que ajudava a gente a se alegrar", é o que diz Guimarães Rosa em outro contexto, de maneira simples.

Na América pré-colombiana, anti-tabagistas não poderiam fazer sua principal reivindicação, de que o cigarro num ambiente fechado torna todos os presentes fumantes passivos: não havia ambientes fechados. Esse é talvez o grande problema, não poder evitar que os à sua volta inalem seu subproduto. Uma questão que só seria resolvida com o cigarro sem fumaça. Problemática, sobretudo porque perde na comparação com outro vício, o de beber: em cada boteco, por mais imundo que seja, tem um mictório para os mais afoitos (e, mesmo, toda bexiga tem limite), embora seja muito mais fácil se livrar das cinzas e da fumaça. Quem não se importuna com esses dejetos poderá usufruir de uma agradável e pacífica convivência com fumantes. Mário Quintana é quem alerta: "Desconfia dos que não fumam: esses não tem vida interior, não tem sentimentos. O cigarro é uma maneira disfarçada de suspirar".

Essa frase, além de denunciar uma espécie de comportamento típico de quem fuma, dá uma pista da íntima e longa relação entre o tabaco e as artes, em particular, a literatura. Onipresente nos textos, embora pouco louvado declaradamente, o cigarro marcou sua presença em versos como o de Augusto dos Anjos "Toma um fósforo / Acenda teu cigarro / o beijo, amigo / é a véspera do escarro". A Souza Cruz, líder no mercado brasileiro, publicava um relatório anual para acionistas com ensaios literários e fotográficos envolvendo a arte relacionada ao fumar, cativantes quase a ponto de te convencer -- se você já não é -- a experimentar o sabor ocre. Para Ruy Castro, ele é "o nosso cúmplice, o parceiro com quem, sem trocar de lábios, dialogamos em segredo", ou seja, um ente, com o qual pode-se estabelecer uma relação dual, como a de Manuel Bandeira: "fumo abençoado, que é amargo e abjeto!". Bandeira tinha tuberculose.

A história da literatura não teria sido a mesma sem os cálices e as piteiras, e ambos ajudaram a construir tantas obras primas como abreviaram carreiras, daí o caráter conflitante do verso de Bandeira. Rubem Braga, que nos seus bons tempos era chamado de "chaminé", parou de fumar após extirpar um quisto benigno no pulmão, e, dizem, andava com um pedaço dele (isso: do próprio pulmão) no bolso para servir como... um argumento mais convincente, em discussões com fãs mais afoitos da fumaça, tem uma longa crônica onde reúne suas reminiscências de décadas de isqueiro e fósforos, de final exemplar: "Mas chega, não falarei mais nisto. Fumar foi das piores bobagens que fiz na vida, mas não pretendo convencer ninguém. Já tentei fazer isso, e o sujeito ainda caçoa da gente, de cigarro no bico. Ah, quem quiser que se fume."

Bate-bocas à parte, um fato pouco conhecido sobre o tabaco trata do salvamento de um dos maiores nomes do século. É o que afirma Norman Mailer em Portrait of Picasso as a Young Man, segundo tradução do não-fumante Millôr Fernandes:

"Picasso veio à luz às 11:15 de outubro de 1881, em Málaga. Natimorto. Não respirava. Nem chorava. A parteira abandonou-o e começou a cuidar da mãe. Se não fosse pela presença do tio, Dr. Salvador Ruiz, o menino não teria vivido. Don Salvador inclinou-se sobre o corpo inerte e exalou nas ventas do menino a fumaça do seu fétido charuto. Picasso estremeceu. Picasso berrou. Um gênio chegou à vida. Sua respiração foi um sopro de fumo, irritando-lhe a garganta, queimando-a até os pulmões, com o poderoso estímulo da nicotina."

Como se vê, há muito mais por trás dos anéis cinzentos do que as advertências do Ministério da Saúde. Em tempo: o autor deste texto não fuma.

Rafael Lima
Rio de Janeiro, 7/5/2001

 

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