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Quinta-feira, 18/7/2002
Três tragédias
Adriana Baggio

Tragédias urbanas não são privilégio de nenhuma cidade em especial. É claro que, por uma questão de oportunidade, cidades grandes têm um maior número de acontecimentos funestos do que cidades menores. Existe ainda o fator proporcionalidade, mas que não vem ao caso agora. Todo este preâmbulo é para justificar que abordar o universo canino metafórico de João Pessoa não significa dizer que essas coisas só acontecem aqui. Mas como eu moro aqui e leio os jornais daqui (o que, por si só, já é uma tragédia), vou acabar falando daqui mesmo.

Algum tempo atrás houve uma onda de suicídios em João Pessoa. Pode parecer estranho para moradores de outros locais do país, menos dotados pela natureza, que as pessoas se matem em uma terra onde o sol brilha quase o ano todo, onde as frutas são sempre doces e é feriado no dia de São João. Pois é, mas a vida não é só isso. Essa constatação deve ter atormentado as quatro pessoas que, num espaço de 15 dias, resolveram se matar. Além desta concentração de suicídios em um mesmo período, o método utilizado também chocou a opinião pública. Todos eles pularam do alto de edifícios. Eram todas pessoas que, em um país como Brasil, são consideradas privilegiadas: estudavam ou já tinham feito faculdade, tinham profissão, família e não passavam fome. Em um lugar onde roubo de carro sai no jornal, dá para imaginar o frisson da imprensa ao tratar destes casos. As notícias foram seguidas por reportagens sobre o aspecto psicossocial das tragédias, e a especulação sobre o que teria motivado essas pessoas não só a tirar a própria vida, mas fazê-lo da mesma maneira, como se seguissem uma espécie de moda. Depois de um tempo, como acontece com todas as tragédias, essa também foi esquecida. Não se leu mais nada nos jornais sobre suicidas.

A segunda tragédia, mais recente, é o assassinato do prefeito de Santa Luzia, cidade do interior do estado famosa pelas comemorações do São João. Parece história de cangaceiro, mas é bem realidade. Mataram o prefeito, e os acusados são figurinhas ligadas ao poder público, às instituições que, teoricamente, deveriam proteger os cidadãos. Por conta do assassinato, a festa de São João, que atrai milhares de pessoas para a cidade, foi cancelada. A molecada passou direto por Santa Luzia e foi bater em Patos, uma cidade bonita, agradável, também conhecida pelos agitos da festa matuta. A cidade, que organiza sozinha o São João, sem o apoio do governo do estado, nesse ano teve que aturar a presença do vice, candidato a governador da Paraíba. Em troca de shows de bandas do chamado forró cearense, ou forró universitário, aquele tipo de música detestável que de forró não tem nada, o povo teve que agüentar o blá-blá-blá dos políticos empoleirados no palanque. Mas deve ter descido pior para o prefeito, adversário político do candidato ao governo, que acabou ficando apagado como anfitrião da festa.

A pior das tragédias é a pior porque tem um lado cômico. Um suicídio não dá margem para se achar graça. Um assassinato político não dá vontade de rir. Mas uma tragédia que tem o lado cômico faz com que a gente esqueça o que pode estar por trás daquilo que se vê e que provoca risos. Isso é o pior. Se agarrar na possibilidade do riso para não refletir o que motivou o acontecimento. Pois um homem andando nu no meio da rua, calmamente, não provoca riso? E ao mesmo tempo, não causa um desconforto? Considerações sobre o naturalismo à parte, é incômodo ver alguém andando nu no meio da rua, na hora do almoço, porque esse não é um comportamento comum, não é aceitável, não é permitido. Quem andaria dessa maneira, completamente pelado, sob o sol forte de meio-dia? Um tarado? Difícil acreditar, já que o homem não parecia um exibicionista. Ele andava de maneira calma, sem estar atrás de alguém, sem olhar para os lados. Seguia reto pelo asfalto, ignorando a calçada e os carros que paravam para apreciar o espetáculo. Um louco, talvez? É a explicação mais plausível. Só uma pessoa fora do que concebemos como juízo normal andaria dessa maneira pela rua. No momento em que o choque passou e o raciocínio voltou, exigindo uma atitude que, neste caso, era chamar a polícia, ouve-se uma sirene se aproximando. Pelo retrovisor deu para ver os médicos encaminhando o homem para a ambulância, delicadamente, graças a Deus ao contrário do que eu temia. Como todas as tragédias, pequenas e grandes, essa também foi comentada, depois assimilada e digerida pelos mecanismos que nos fazem capazes de conviver com esse tipo de coisa sem maiores prejuízos psicológicos. Enfim, foi esquecida, até o dia de hoje.

Ao ver o homem nu andando na rua, e depois de decidir que 1) ele não deveria ser um tarado, 2) portanto deveria ser louco, passamos para o estágio de tentar descobrir de onde ele poderia ter saído. Avaliando as possibilidades da região lembramos 3) de uma clínica para doentes mentais que fica nas imediações do local onde o pelado apareceu. Assim, depois desse exercício de lógica, acabou-se o mistério e o assunto perdeu seu interesse. Qual não foi minha surpresa ao saber que o homem tinha saído do 16º Batalhão de alguma coisa? Dizem os soldados que ele tirou a roupa, comeu merda (literalmente) e saiu andando pelas ruas do bairro. É ou não é uma tragédia? Se fosse louco, não seria tão trágico. Mas um militar? O que andam fazendo com esses moços dentro dos quartéis? Quem quiser, que aproveite a deixa, e faça uma reflexão sobre o estado da segurança pública do nosso país.

Adriana Baggio
Curitiba, 18/7/2002

 

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