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Segunda-feira, 22/7/2002
Jean-Christophe Rufin e o Pau-Brasil
Helena Vasconcelos

É comum dizer-se, neste nosso tempo dominado pela tecnologia, que já não há heróis. Ou, pior ainda, que existem, mas fabricados pelos poderosos "media" o que lhes confere um carácter efémero, fragilizado pela sua perversa relação com a fama, a qual, parafraseando Andy Wahrol está ao alcance de todos nem que seja por quinze minutos. A verdade é que essa mesma fama e consequente proveito é sistematicamente confundida com ideal e valor, tendo-se tornado numa das grandes armadilhas mais amplamente utilizadas, ao longo da História. É sabido que os sentimentos patrióticos com cariz nacionalista atingem até os historiadores mais isentos, o que faz da disciplina que desenvolvem uma sucessão de vitórias, de actos gloriosos e de acções perpetradas por personalidades sem mácula. Só a partir de há cerca de cinquenta anos a História ganhou uma dimensão mais crítica.

Jean-Christophe Rufin, ao escrever "Pau-Brasil", incorreu num duplo risco: o de não agradar pelo seu rigor na pesquisa de fontes - a partir dos quais divulga um episódio não muito lisonjeiro para a França e Portugal em particular, e para os europeus em geral - e por introduzir, nesse contexto, uma história ficcionada, a dos dois irmãos, Just e Colombe, que parece um pouco rocambolesca mas que acaba por funcionar bem e dar uma dimensão humanista à narrativa...

Talvez seja por estas razões que, numa finalíssima acirrada, "Pau-Brasil" acabou por arrecadar o Prémio Goncourt 2001, o que certamente teria agradado aos irmãos Jules e Edmond apreciadores de bons romances com descrições detalhadas num francês perfeito.

O autor, para além de romancista tem levado a cabo uma acção humanitária exemplar, tendo sido um dos pioneiros dos Médicos Sem Fronteiras. Para além do aspecto idealista e nobre desta missão - já que estamos a falar de heróis e colocando à margem todas as polémicas que, nos últimos tempos, têm rodeado estas organizações - é importante realçar o bem efectivo, real, prático, visível que estes homens e mulheres têm desenvolvido nos locais mais remotos e perigosos deste planeta. Esta referência é importante porque, como médico e humanista, Jean-Christophe Rufin é um homem pleno de (com)paixão, um sentimento que atravessa toda a sua obra e que o eleva e prestigia, como escritor e como ser humano.

Rufin entrou em contacto com a história verídica contada em "Pau-Brasil" num pequeno museu na cidade do Rio de Janeiro - o Paço Real - um edifício colonial português, estrangulado entre auto-estradas e arranha-céus. É interessante referir que este episódio, praticamente obliterado da História oficial, tanto do Brasil como da França, deu origem a um dos mais famosos ensaios de Montaigne, apropriadamente chamado "Dos Canibais". A trama refere-se a uma tentativa de colonização e penetração francesa no Brasil, em 1555, numa altura em que esse imenso, estranho e inóspito território já é pertença da coroa portuguesa.

Numa Europa em convulsão, cabe ao cavaleiro Nicolas de Villegagnon a tarefa de aparelhar uma expedição composta por gente das mais variadas origens que se predispõe, mais ou menos forçada pelas circunstâncias, a rumar em direcção ao Novo Mundo. Portugal e Espanha são as grandes potências mundiais e o xadrez político joga-se com base nas lutas de poder, alianças, negociações (com o seu cortejo de emissários, espiões, vilões, etc.), tendo a intervenção dos chefes religiosos um peso decisivo. O momento é de grandes movimentações - militares, religiosas, políticas, ideológicas. O grande Damião de Góis, amigo íntimo de Erasmo (e igualmente perseguido pelo Santo Ofício) é um dos que defende com ardor um humanismo esclarecido em que o poder dos príncipes seja mitigado pela grande força individual aplicada no ímpeto das descobertas e no alargamento das ideias. O Novo Mundo, cujas vias tinham sido rasgadas pelos portugueses, oferece-se assim à curiosidade do mundo e à necessidade expansionista dos povos. O Renascimento como momento de confrontação, de oposições irreconciliáveis - de um lado o dogma, do outro o livre arbítrio - torna-se num tempo convulso e simultaneamente dinâmico e complexo. Os horizontes abrem-se ao homem maravilhado perante a hipótese de um conhecimento cada vez mais vasto. A ciência desenvolve-se a passos de gigante, a ordem feudal é posta em causa e o ideal clássico serve de fonte de inspiração. Montaigne, que é contemporâneo dos acontecimentos descritos em "Pau-Brasil", torna-se o simbolo, o grande filósofo das ideias que contribuíram para uma revitalização das crenças do homem em si próprio e no mundo.

Villegagnon, o chefe da expedição personifica esse ideal de homem, aventureiro, disposto a aprender, carismático e ao mesmo tempo céptico, dividido entre uma herança feudal mais rígida e a força arrebatadora de um tempo novo. Poder-se-á dizer dele o que Montaigne escreveu sobre si próprio: "Não conheço maior monstro e maior milagre do que eu próprio".

Com os membros da expedição, depois de uma viagem aventurosa e deveras atribulada, instala-se numa ilha deserta em frente à baía de Guanabara, disposto a estabelecer uma sociedade ideal, com base numa liberdade ainda difícil de conceber. A colónia transforma-se rapidamente num microcosmos que reflecte o mundo ocidental e nos surge, aqui, como estranhamente familiar. O ideal - estabelecer uma França Antárctica, onde as ideias "civilizadas" dessa mesma França possam florescer - vai rapidamente dar lugar a conflitos de ordem moral, social, psicológica e religiosa. Num local em que a Natureza é soberana, brutal e avassaladora, as tentativas de preservar a unidade, as dúvidas e indecisões quanto á assunção da liderança e a dificuldade de integração num universo demasiado estranho, entram sistematicamente em choque uma vez que, como diz o autor, "a concepção de liberdade era muito própria de cada um e pressupunha a rendição das outras". A chegada de um grupo de Quackers, a dissensão dos anabaptistas e a defesa da integridade cristã, mais não são do que um reflexo da perturbação do Velho Mundo e um prenúncio das grandes lutas religiosas que se irão desencadear, na Europa, com toda a fúria. Na colónia, os calvinistas criam um mundo à parte, desafiando Villegagnon que, ao ler as "Ordenações" de Calvino que lhe chegam às mãos percebe que o homem que ele tanto admirara pela sua audácia e rebeldia contra uma ordem pré-estabelecida se encontra depois de "revolucionar" na posição de "reprimir" sob a forma de "regulamentos, punições e polícia". Longe da Europa, enfrentando perigos tantos externos como internos, vindos de todos os lados - os índios, os traficantes, os espiões, a ameaça dos portugueses estabelecidos mais ao norte, as lutas intestinas e a hostilidade da própria natureza - Villegagnon tenta conciliar os seus ideais com a autoridade, a defesa do nome da França com o apelo do caos num mundo totalmente diverso em termos de cultura, de hábitos de vida, de ética.

É este, evidentemente, o grande drama inerente a todas as revoluções. Tal como na ilha tropical de Villegagnon o entusiasmo dá rapidamente lugar à preguiça, à cupidez, à licenciosidade, à violência. As belas ideias que, a princípio, aparecem banhadas na claridade do ideal e das boas intenções, transformam-se na desordem da guerra, da vingança, das lutas de poder. Villegagnon que tem "a fragilidade funesta dos heróis" é o ser emblemático de toda esta situação, com a sua violência contida, o seu desejo de evangelização, os seus rompantes de ira, a sua estranha "bondade" que se manifesta nas circunstâncias mais peculiares. Curiosamente, ele, o descobridor e o curioso, é o que menos contacto tem com os índios, com os verdadeiros ocupantes daquele admirável universo em que o canibalismo é um acto ritual de apreço e respeito e os contactos entre os seres humanos se fazem com base em valores totalmente diferentes dos dos europeus. Sem grande intervencionismo, Villegagnon observa como os mais vis dos seus homens usam as mulheres, utilizam os escravos e introduzem a chamada "civilização" das armas, das doenças, do "pudor" hipócrita.

Ficam, como ponto de referência positiva, as figuras dos dois verdadeiros heróis desta história, os misteriosos órfãos que são arrastados à força como "interpretes", uma vez que, nestas expedições, era costume levarem-se crianças porque elas aprendiam com mais facilidade as línguas nativas. Numa extraordinária galeria de personagens - em que o sábio Pay-Lo, um francês que vive com os índios, é figura de destaque - Just e Colombe são o emblema das ideias do autor que confessa a sua obsessão por "esse momento do primeiro encontro de civilizações diferentes, o instante da descoberta que contém o germe de todas as paixões e de todos os futuros equívocos". Pay-Lo é o homem que encontrou numa civilização totalmente diferente um equilíbrio espiritual e psicológico bem como a comunhão perfeita com a poderosa Natureza. A certa altura ele afirma que "não foi o Homem que foi expulso do Paraíso terrestre mas sim Deus. O Homem apoderou-se da Criação para a destruir". Esta ideia será recuperada quase dois séculos depois por Rousseau que nega a ideia do Pecado Original e cria o mito do "bom selvagem", situando as causas da infelicidade humana na desordem social e na incapacidade dos homens, bem patente nesta história, de agir com uma componente racional numa base de respeito mútuo e de aceitação pacífica de outras formas culturais e civilizacionais.

É Colombe, a jovem loira de olhos cor de sol quem estabelece a verdadeira ponte entre os dois mundos, integrando-se profundamente nessa sociedade em estado puro. Entre os "canibais" e os franceses "civilizados" , ela opta decididamente pelos primeiros, despindo-se literalmente da sua duplamente pesada capa de "mulher" e de "branca". É ela quem percorre um glorioso, doloroso e corajoso caminho em busca de uma identidade, do amor, da amizade, do conhecimento humano.

A par e passo com os outros intervenientes nesta saga - Quentin, du Pont, Martin, Aude (a mulher "civilizada" manipuladora e manipulada), Dom Gonzagues, Gralha-Calva, Le Thoret e tantos outros - Just e Colombe surgem com um vigor especial, como a imagem de um tempo novo e cheio de curiosidade e energia, livre de preconceitos e disposto a enfrentar os riscos da descoberta.

No final, os portugueses recuperam o território de volta para a coroa portuguesa sem grande esforço ou glória, uma vez que num processo antropofágico são os membros da colónia que acabam por se "devorar" uns aos outros. Da aventura resta a lembrança dos dois "irmãos" juntos nas ideias de liberdade e de sentimentos. Just e Colombe, o "justo" e a "pomba" ficarão para contar a história de um aspecto da nossa humanidade que, apesar de tudo, teima em conservar-se viva.

Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pela autora. Publicado originalmente na Revista Storm, editada por Helena Vasconcelos em Portugal. (Foi mantida intacta também a grafia original.)

Helena Vasconcelos
Lisboa, 22/7/2002

 

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