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Quarta-feira, 24/7/2002
O Corpo que fala
Rennata Airoldi

As palavras traduzem muito de nossos sentimentos e pensamentos, se compreendidas com exatidão. Dizer e ouvir aquilo que se deseja é, sem dúvida, uma sensação sublime. No teatro, assim como na vida, as palavras têm um papel fundamental. Grandes autores, grandes obras não sobreviveriam através dos tempos se não fosse a escrita. Assim, à partir do instante em que as palavras lidas ecoam no espaço, temos a "fala", o texto dito, temos palavras vivas.

Teatro é uma soma de elementos. É o mesmo que uma imensa duna de areia. Pequenos grãos se unem e juntos fazem parte de algo muito maior: uma duna inteira! Uma só andorinha não faz verão! No fazer teatral, é a mesma coisa. Todos os detalhes somados de maneira coerente determinam um bom espetáculo. Do instante em que é "fecundado" por uma idéia inicial até o momento em que é concebido no contato com o espectador. E para que ele seja bem degustado, deve ser compreendido por aqueles que assistem. Alguns códigos são estabelecidos e, aos poucos, serão decodificados e traduzidos em sensações, sentimentos, pensamentos, questionamentos, lamúrias, etc. Não importa qual a escolha daquele que propõe o jogo teatral, mas sim que ele seja compreendido por um público determinado, para que cumpra seu papel enquanto veículo de comunicação e formação cultural.

Há cerca de uma semana, o grupo russo "CIA DEREVO" apresentou no teatro do Sesc Anchieta o espetáculo "Once...". Russos? Sim. E deu para "entender" tudo! (Sei que este texto pode estar parecendo conversa de bêbado mas logo, tudo se conectará! [Para usar a gíria atual.]) Essa companhia foi fundada em 1988 na cidade de São Petersburgo. Desde então desenvolve seu trabalho mesclando "commedia dell'arte", mímica, butoh e clown. Fazendo ainda utilização do cinema, literatura, artes plásticas unindo, num mesmo espetáculo, drama e comédia. A linguagem desenvolvida pelo grupo comunica tudo através de ações físicas, gestos, intenções, o que diz respeito ao Corpo. Respiração, presença cênica, sons, ruídos. Nenhuma palavra!

Não que a ausência da palavra seja determinante para a compreensão de um espetáculo em uma língua que não entendemos. Eu mesma já assisti a vários espetáculos em outras línguas, sem legenda e totalmente compreensíveis. Mas não é esse o ponto em questão. Quero falar de algo que é universal e que é compreendido em qualquer parte do mundo, sendo a matéria do homem: o corpo. Não importa a nacionalidade, seja onde for, o homem nu carrega a mesma essência. Assim, é fácil compreender um corpo com dor, um corpo alegre pois em toda a parte ele se manifesta de maneira semelhante. A memória física que carregamos durante toda a história da humanidade faz com que nossas reações se repitam e se expressem de maneira similar. Sempre!

O espetáculo "Once..." através de seus "tipos", identificáveis em qualquer cultura por serem arquétipos do ser humano, fala de um tema igualmente universal com muito humor: AMOR. O Amor e os devaneios de alguém que está perdidamente, cegamente apaixonado. Todo esse imaginário, somado a um "corpo que fala" contava sem enigmas toda a "história". Assim, os grãos das palavras não faziam falta. Elas estavam implícitas nas atitudes, grunidos, sons, músicas e gestos. Tudo se encaixava perfeitamente, como num quebra cabeça. Engana-se quem acha que o Teatro depende única e exclusivamente de uma "verborragia" infinita! Os mais sábios dizem: o bom ator se reconhece pela pausa! (Esclarecendo que a pausa não é o silêncio vazio. É algo muito mais complexo...)

É um desafio para o ator construir "um corpo que fala". Na arte oriental, não existe a separação dança e teatro. Ambas as manifestações artísticas se fundem. Para nós, existe a Dança e o Teatro. Fala-se muitas vezes que um ator difere-se de um bailarino por "um corpo que fala". Seria por pronunciar palavras? E um bailarino que só faz uma repetição de movimentos sem dizer nada com o corpo? Dança? Sem dúvida, a linguagem do corpo é a linguagem universal. Mas trabalhar o corpo e falar através dele não é tão simples. Na verdade, o corpo traduz externamente nossos sentimentos, sensações, desejos. Sem dúvida a "CIA DEREVO" conseguiu falar muito através da "dança-teatro" ou ainda do "teatro-dança" sem dizer uma palavra!

Boletim da "II Mostra de Teatro Cemitério de Automóveis"
Esta última semana na mostra foi um sucesso! É surpreendente a presença maciça do público que tem acompanhado todo o desenrolar desse grande "festival". Na sexta-feira, temos a última oportunidade para conhecer o primeiro texto de Joeli Pimentel. O ator, que participa de vários espetáculos da mostra, traz à cena sua primeira peça: "Comprei um Trêsoitão e fui brincar com Deus". É um texto que trata do submundo de maneira precisa, sem rodeios. Fala claramente do desejo, do relacionamento entre um homem e uma mulher. Dois amigos que um dia disputaram uma mesma mulher. Um já "saciado" e cansado da convivência. O outro ainda fascinado e tomado por um sentimento de perda muito grande. Ela, Gel, já não sabe se fez a opção certa: teria sido diferente se ficasse com Samuca ao invés de Pepe? Há, sem dúvida, muitas formas de amar alguém. As escolhas que fazemos são determinantes... Com cenas ágeis e objetivas, o texto traduz friamente os sentimentos e alma humana e o sofrimento é igual para qualquer classe social. O homem que tem poucas perspectivas, que trai, que pune, que ameaça, que agride. Que, de alguma forma, busca se salvar. A direção é de Mário Bortolotto, que também atua na peça trazendo o próprio autor: Joeli pimentel. O elenco conta ainda com Wilton Andrade e Junia Busch. Vale à pena conferir e conhecer mais um autor que desponta nos palcos da cidade.

Confira toda a programação da Mostra através do site: www.cemiteriodeautomoveis.hpg.ig.com.br

Rennata Airoldi
São Paulo, 24/7/2002

 

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