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Sexta-feira, 26/7/2002
Amando quem não existe
Alexandre Soares Silva

Para mostrar o quanto era pecador no passado, Santo Agostinho diz (logo no início das "Confissões") que quando jovem não chorava nunca pela própria morte espiritual em que vivia, mas que era capaz de chorar pela morte de um personagem de ficção saído da Eneida de Virgílio. "Nada mais digno de compaixão do que o infeliz que derrama lágrimas pela morte de Dido, (...), sem se compadecer de si mesmo nem chorar a própria morte por falta de amor para convosco, ó meu Deus, luz da minha alma..." ("Confissões", Livro Um).

Bom, me lembrei disso outro dia ao quase chorar (quase, quase) a morte de um detetive melômano e alcólatra chamado Inspetor Morse. Que jamais existiu no mesmo universo em que eu existo; que, em outras palavras, é um personagem de ficção. Mas ele morreu no livro, e as lágrimas ameaçaram sair. As luzes da cidade lá fora chegaram a virar cruzinhas. "É só um livro", eu pensei, olhando para a capa; "é só um livro, feito de papel." Olhei a cara do autor, Colin Dexter, na contracapa: um homem gordinho, sexagenário, num pub, sorrindo com um copo de cerveja na mão. Me forcei a lembrar que aquele homem tinha pensado num inglês imaginário, um detetive ríspido e presunçoso, e depois tinha pensado na morte dele; tudo tinha se passado dentro daquela cabeça redonda, e se repetido dentro da minha cabeça oval; e ninguém tinha morrido de fato. Mas eu não sentia que isso era assim.

Amamos alguns personagens. Santo Agostinho amou Dido, ou não teria chorado a morte dela. Há quem ame personagens de novela e chore quando a novela acaba. Paulo Francis, como todos nós que lemos Guerra e Paz e Suave é a Noite, amou Natascha Rostov e Nicole Diver. E eu também tenho a minha lista - começando com Hercule Poirot, que foi o primeiro personagem que eu amei. Emília, Don Quixote, Pedro Bezúkov, Tom Ripley, Philip Marlowe, Emma Woodehouse, Sherlock Holmes, Aslan. Que essas pessoas não existam é um detalhe irrelevante, e ficar insistindo nesse ponto é tão grosseiro quanto não gostar de uma pessoa porque ela tem hemorróidas. É um pequeno defeito; a polidez manda que não se mencione o assunto.

Mas há um ponto em que existir ou não existir, no objeto amado, faz muita diferença; há um ponto em que não existir é definitivamente uma vantagem no objeto amado. Morreu alguém que você ama - e tudo o que você tem é a lembrança. Lembrança é bom, mas não é a mesma coisa que a pessoa em si. Aquele clichê de fulano ou fulana que "viverá em nossos corações" é um consolo, mas um consolo pobre. A pessoa "que vive em nossos corações" é uma cópia pálida - não tem de modo algum a mesma natureza da pessoa que de fato viveu. Não é só uma questão de intensidade de existência - é uma questão de natureza de existência. Um era uma pessoa, o outro é uma lembrança de uma pessoa.

Mas veja o caso de alguém que nunca existiu. Veja o caso do bom e velho e ríspido Inspetor Endeavour Morse. Ele morreu na página 420 do romance "The Remorseful Day", "e eu aceitei que ele tivesse morrido. Minutos depois, no entanto, já com saudades, abri o livro na página 7, e lá estava Morse na sala dele, de noitinha, ouvindo Schubert. E o Morse que agora ouvia Schubert não era uma lembrança de Morse, mas o verdadeiro Morse, em nada modificado na sua natureza, e tão verdadeiramente vivo quanto jamais tinha estado.

Melhor ainda: a qualquer momento posso pegar o primeiro livro em que Morse apareceu ("Last Bus to Woodstock", 1975), e vê-lo lá, bebendo cerveja, resolvendo palavras cruzadas - inteiramente vivo, vivo de verdade, tanto quanto a ficção permite, e tanto quanto ele jamais esteve - e a décadas da própria morte.

A Série
Há uma série sobre o Inspetor Morse passando atualmente no canal Film & Arts, com John Thaw no papel de Morse. A série é boa - não tão boa quanto os livros, mas é boa. Vários diretores ingleses agora famosos começaram as carreiras por lá (Danny Boyle, Anthony Minghella, etc). E é impossível imaginar agora o Inspetor Morse com outra cara ou outra voz que não a de John Thaw (1942-2002).

No Love
Passemos rapidamente por um livro chamado "Personae" (Ed. Senac, Org. por Lourenço Dantas Mota e Benjamim Abdala Junior). Neste livro, doze professores e escritores falam sobre as vidas de doze personagens de romances brasileiros: Iracema, Capitu, etc. Mas é sem amor. Está certo que deve ser difícil amar um chato como Paulo Honório, o protagonista de São Bernardo, de Graciliano Ramos. É um grande personagem; mas inamável. Não há quem ame aquela besta, e o escritor que escreve sobre ele nem tenta fingir. Só Marisa Lajolo parece escrever com o amor do qual eu estava falando lá em cima - e o ensaio dela sobre a Emília quase vale pelo livro todo.

Quase. Para um livro de introdução aos personagens, não há sentido em que os ensaios introdutórios sejam mais chatos do que os livros em que os personagens aparecem. Não há entusiasmo algum. Por algum motivo, professores brasileiros de literatura sentem vergonha de amar personagens. Parece simplório demais; um "nível de leitura" (argh) primitivo. Lembro bem de uma enquete feita pela Folha, faz pouco, entre professores de literatura, para saber quais os personagens preferidos deles na literatura nacional. A maioria pareceu responder com um certo nojo; diziam algum nome, mas também diziam algo do tipo "não penso em termos de personagem, penso em termos de estrutura verbal, o jogo lúdico autor-leitor", etc. O resultado de tanto desamor é este livro; e a única criatura amada neste livro é uma bonequinha recheada de macela, malvada e petulante, cujas primeiras palavras na vida são as que eu quero dizer também, depois de ter lido este livro: Estou com um horrível gosto de sapo na boca.

No Mundo da Muóda
O que eu não entendo no mundo da moda é o seguinte.

Bom, muita coisa. Mas principalmente isto. Fui no tal do São Paulo (desculpe) Fashion Week, para ver um desfile de biquíni, com a vaga esperança de que as modelos de biquíni fossem mais cheínhas. Não eram, é claro; as brancas, especialmente, eram um pouquinho aflitivas. Digamos que se uma delas estivesse na cama com você numa manhã fria, e você tocasse no ombro dela para acordá-la, machucaria a mão. (Ou se ela se virasse e o joelho dela batesse no seu. Dói só de pensar.) Mas não é da magreza delas que quero falar, porque todo mundo sabe que elas são horrivelmente magras. Às vezes, com uma roupa cobrindo os feixinhos, elas ficam bem; se não fosse o rosto quase sempre vazio de quem não tem propriamente um espírito, mas mais algo parecido com um princípio vital ou algo assim - como uma trepadeira ou uma baratinha. Mas vá lá, algumas delas até tem espírito. Tenho certeza que algumas delas devem ser interessantes, devem ter lido Milton, devem ouvir Wagner. Sou otimista. Pense em Lauren Hutton.

E andam mal. Usavam salto alto e quase todas elas mancavam. Se ninguém tivesse dado para elas a maldita aula de andar, elas andariam melhor. Mas chega, este não é um texto anti-modelo. Até porque acho ridículos esses textos em que nerds ridicularizam a Gisele Bündchen, quando é óbvio que se ela desse bola pra eles na vida real eles cairiam de joelhos agradecidos. Eu cairia. (Mas pode ser que em algum momento da noite eu me assustasse ao agarrar desavisadamente a canela dela).

Não, é a moda em si que eu não entendo. Os biquínis. Como todo mundo, prestei atenção neles, porque não havia muito o que ver nas modelos. E eram só biquínis. Não eram "malucos"; não eram feito de cacos de vidro, nem de tentáculos de polvo, nem de testículos de iguana, nem nada assim. Eram iguais a centenas de outros que se vê nas praias. Não posso acreditar que a mulher que desenhou aquilo (Paola Anita Robba, da Poko Pano) tenha sido a primeira a inventar faixas horizontais em laranja e amarelo. Ou que só ela tenha criado aquelas faixas naquela proporção específica. Não; necessariamente, aquilo já foi feito milhares de vezes ao longo dos últimos quarenta anos.

É como se todos os pintores, por exemplo, fossem reduzidos a copiar Mondrian, só variando sutilmente o tamanho dos quadrados. Do jeito que a pintura está, isso seria até um avanço; mas dificilmente despertaria algum entusiasmo genuíno. E no entanto, acabado o desfile, dezenas de pessoas deram urros de entusiasmo epiceno. Juro, urros. Não entendi. Não entendo. Nunca vou entender.

Mas me diverti. A certa altura tirei os óculos e as modelos viraram ovóides de luz branca. Desapareceram as expressões de tédio e nem dava pra perceber que os ovóides mancavam. Eu só via uma larga faixa laranja, que era a passarela, com os ovóides andando em cima. Muito bonito. Recomendo o mundo da moda a todos os míopes.

Jolly Good!



(Agradecimento: ao meu amigo Fabio Danesi - ex-Digestivo, atualmente escrevendo o FDR - pela companhia; e à Milene Chaves, da Elle - que, além do charme, nos contrabandeou para dentro daquele prédio alienígena no Ibirapuera...)

Alexandre Soares Silva
São Paulo, 26/7/2002

 

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