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Sexta-feira, 2/8/2002
Retrato do jovem quando artista no século XXI
Julio Daio Borges

Habitante da metrópole, tem um pé na periferia. Ou porque dela descende, ou porque nela acredita. Marcado pelo fluxo migratório, filho de pais de outros estados (quando não de outros países), está acostumado a acordar numa primeira cidade, almoçar numa segunda e ir dormir numa terceira, num mesmo dia. Seu ideal para o futuro, para a velhice, para a aposentadoria, é fixar-se numa praia (não cita nenhuma em específico). Anseia por férias em locações paradisíacas; não concebe o descanso sem suor, sal e maresia.

Cultiva o mito da juventude eterna (embora saiba que, historicamente, ela não tenha durado tanto assim). Tem o corpo como principal adereço, tatuando-o ou enganchando-o com piercings. Adota um visual hermafrodita, ainda que sua conduta social nem sempre se oriente por isso (se for mulher, em sociedade fará uso de atitudes masculinas; se for homem, de femininas). Veste-se de acordo às regras do despojamento calculado (mi-li-me-tri-ca-men-te); barbeia-se mal e enseba seus cabelos despenteados com gel. Sua moda é a das ruas; seu estilo, étnico; sua simpatia, pelas chamadas minorias.

Quando pode escolher, trabalha com design. Ou com cinema (na periclitante indústria de curtas paulista). [Sabe o que é ser cool.] Quando não pode escolher, faz diagramação em revistas; ou então mexe com fotografia. Edita imagens de vez em quando. (Tem mestrado em Photoshop.) MBA não lhe é um termo estranho; tem um primo que só fala nisso. Mas seu negócio mesmo é produção. Faz produção - e é tudo. Seu hábitat natural é o meio publicitário. Pode ser encontrado também no estado desempregado. Seu charme atual é viver sem grana.

Cresceu numa família de pais separados; tem portanto aversão a casamento. (Depois, acaba casando.) Se for mulher, pregará a independência financeira (nem que seja para convencer a si mesma). Terá filhos como uma forma de expressão. Dispensará, em seguida, o(a) companheiro(a). Sendo fruto de criação da mãe, terá a progenitora como origem e fim de tudo. Os amigos virão a seguir, no elenco das afinidades eletivas. Assistirá Friends. O pai não será uma figura muito presente em sua vida (talvez alguém a quem o mundo atribuiu certa importância, só isso). Num dado momento de sua biografia, preterirá a companhia de pessoas, preferindo a de bichos. Suspirará pelos entes queridos que não consegue ver no dia-a-dia.

Sua trilha sonora será a da música eletrônica. Freqüentará os festivais e não conceberá outro ambiente que não seja o lounge. Rap, hip hop, se afirmarão como a mais legítima poesia. Não usará drogas, no sentido clássico; apenas alguns aditivos químicos. Com consciência, é claro. O celular será pura e simplesmente uma extensão de seus lábios e ouvidos. Sua agenda se orientará por eventos, e não por objetos. Sem medo ou vergonha de consumir. Manterá como hobby o regime que sempre começa na semana seguinte. Não irá ao clube, mas sim ao club, para dançar, ver e ser visto.

Como referência máxima, a indústria. O estudo das marcas se estabelecerá como uma forma de eruditismo. Os comerciais (ou "filmes"), como um instrumento na decodificação do mundo. Terá no século XX o seu marco zero. Falará em termos de décadas e não de séculos. Da psicanálise dissolvida em psicologia restarão tão somente os arquétipos; adotá-los-á, como guias. Emprestará glamour a produtos de baixa extração, convertendo em fashion até as havaianas mais legítimas. Desconfiará da medicina tradicional, preferindo sempre a alternativa. Acompanhará as novelas e elegerá a televisão como babá para toda vida.

Procurará viver coisas verdadeiras, e não essa falsa rotina. Engajar-se-á em projetos sociais, porque se cada um fizer a sua parte (e o governo, a dele)... Como supremo objetivo, aprender mais e mais sobre o mundo; aprender a aprender. O melhor trabalho ainda está por vir; e a melhor viagem, também. Não fará coleção de coisa alguma, agarrar-se-á com unhas e dentes à transitoriedade do dia-a-dia. Conceito é tudo, e a forma vem sempre antes do conteúdo. Sem optar por religião alguma, nutrirá uma admiração perene por figuras como Buda e Jesus Cristo; ícones para adornar o altar de uma vida vazia.

Considerar-se-á uma pessoa única.

Julio Daio Borges
São Paulo, 2/8/2002

 

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