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Quinta-feira, 15/8/2002
Homens, cães e livros
Adriana Baggio

"Quando ouço falar do caráter, da lealdade e da dedicação dos cães, fico impassível. Todos os meus cães foram uns patifes, ladrões e encrenqueiros, mas mesmo assim amei todos eles."

Helen Hayes

Não é engraçado que os cães, apesar de serem chamados de os melhores amigos dos homens, tenham sua denominação utilizada para exemplificar as situações ou os tipos menos nobres da humanidade?

Um homem sem caráter, traiçoeiro, mau, é chamado de cachorro. Algumas mulheres de virtude e intenções duvidosas são chamadas de cadelas. Nossos dias, quando muito difíceis, são de cão. Se foi de muito trabalho, estivemos "working like a dog", como já diziam os Beatles. Com tantos animais menos nobres, mais egoístas, o cão foi o escolhido para representar o diabo. Como se não bastasse ser parecido com o satanás, ainda fazem com que o cão esteja associado com a feiúra. Quem nunca encontrou uma criatura tão horrorosa que mais parece o cão chupando manga?

Antes as injustiças que se praticam contra os cães ficassem apenas no plano verbal. A realidade é muito mais cruel. Cachorros e animais de várias espécies são covardemente maltratados por quem não gosta deles, e pior, até por quem diz que gosta. E o cão, coitado, é o único animal que se afeiçoa ao homem incondicionalmente. O cachorro vê em seu dono um deus, um amo, o senhor do seu destino. Que, por pior que seja, ele aceita mansamente, sem muito protesto. É por isso que o maltrato é cruel. Porque o cão não deixa de amar seu dono, mesmo não tendo nenhum tipo de retribuição de seu afeto.

Algumas das sutilezas das relações entre os homens e os cães são retratadas de maneira singela e inteligente por Roger Grenier, em seu livro "Da dificuldade de ser cão" (Companhia das Letras, 2002). Singela porque o autor aborda as diferentes situações pelas quais passaram cachorros famosos da história, ou cachorros de pessoas famosas. Da forte ligação, quase umbilical, entre um cão e seu dono, à doentia relação de crueldade, cada texto aborda um aspecto diferente, mas sempre tendo o cão como personagem principal, e motivo em torno do qual giram algumas das permanentes reflexões da humanidade.

Os relatos são, também, profundamente inteligentes. Não espere, como em "Um dia de cão", de Jim Dratfield (Bertrand Brasil, 2002), um passeio leve e agradável por imagens de cães de diversas raças - ou de raça nenhuma - e frases motivadoras. Um dos grandes atrativos do livro de Roger Grenier é a riqueza da linguagem, a sutileza do texto. Talvez para obrigar uma leitura mais atenta, e para frustrar aqueles que subestimam o conteúdo, ao autor deixa lacunas entre as frases, os pensamentos, as conclusões. O leitor tem a oportunidade de participar da construção do texto em seu aspecto de significação. O preço para esse prazer é a exigência de atenção, respeito e amor pelo escrito - justamente o tipo de comportamento que devemos ter para com os cães.

Grenier também não comete o pecado da condescendência. Cita obras e pessoas conhecidas, outras nem tanto, mas sempre supondo um conhecimento prévio do leitor. Conhecimento esse que, com certeza, passa de um nível básico. Todas as ramificações que as referências do texto possibilitam servem para enriquecer ainda mais o relato - e para dar água na boca. Cada pequeno texto de Roger Grenier é a ponta solta de um novelo. O leitor acaba ficando como um gatinho - perdoem a interferência dos gatos neste tema -, alegremente distraído com o desenrolar do emaranhado de fios. São muitos os novelos, e muitas as pontas soltas que prometem um milhão de passeios interessantes pela história dos homens e dos cães.

Roger Grenier e Jim Dartfield têm em comum o fato de abordarem o mundo dos cachorros a partir de uma visão mais realista. Se Grenier mostra a história real de pessoas reais e seus cães, o autor de "Um mundo cão" aborda outro aspecto da realidade: a de que nem todos os cães (e nem todos os homens), nascem com pedigree. São mais de 100 páginas de fotos de cachorros vira-latas, ou cachorros de raças indefinidas, ou cachorros de raças muito esquisitas, que não despertam o carinho egoísta das crianças. Cada foto merece a companhia de uma frase. As frases, assim como as imagens, remetem ao que Jim explica no início do livro: "somos uma nação de vira-latas e celebramos o triunfo da personalidade sobre a herança de berço. Acreditamos que, se tivermos caráter, determinação e inteligência, poderemos vir a ser alguma coisa na vida".

O espírito é esse: assuma seu lado vira-lata, tire o melhor proveito dele, e tenha personalidade. Os cães não se importam de serem feios, esquisitos, deformados - às vezes por culpa de cruéis tolices cometidas por nós, humanos. Independentemente da aparência deles, e da nossa, eles amam. E como diz Jim, "o amor não tem pedigree".

Para ir além






Adriana Baggio
Curitiba, 15/8/2002

 

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