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Segunda-feira, 14/5/2001
Café-com-leite
Daniela Sandler

Quando vim morar nos Estados Unidos, uma das primeiras coisas que me espantaram foi o clima de "patrulha ideológica" que permeia todos os aspectos da vida por aqui: da piada que se conta entre amigos aos temas de estudo na universidade. No Brasil essa história de politicamente correto nunca pegou, a não ser como motivo de piada (exceção feita a alguns movimentos militantes que adotaram o discurso e o jargão, no mais das vezes sem refletir sobre seu significado no contexto brasileiro).

Aqui não. Fala-se o tempo inteiro em direitos das minorias, "identity politics" (luta pela afirmação identitária de grupos, por exemplo, mulheres, homossexuais, negros, "chicanos"), reconhecimento das identidades individuais, e por aí vai. O feminismo, que começou como a justa reivindicação de direitos políticos, econômicos e sociais para as mulheres, virou receptáculo de toda sorte de rancores, no mais das vezes pessoais. Um dia eu estava dirigindo com umas amigas canadenses. Levei uma fechada de uma mulher numa via de alta velocidade e, no susto, soltei: "Só podia ser mulher"! O carro gelou, minhas amigas ficaram quietas, e eu percebi na hora que havia cometido uma gafe quase imperdoável.

Comecei a me policiar o tempo inteiro. Pelo menos, pensava, eu também vou ter meus direitos como minoria respeitados. Deve haver um lado bom no politicamente correto. Se essa atitude corresponde a uma visão libertária da sociedade, em que há abertura para a ação e os direitos de todos, o que pode haver de errado?

Bom, politicamente correto não é nada disso. Não é democrático, não é libertário, e - pior - é movido por preconceito, ignorância e rancor. Os afro-americanos, por exemplo (termo p.c. para negros) - ninguém aqui quer saber se você é racista. Você é branco, você é mau. O clima é quase hostil. Claro que há exceções, especialmente na universidade, mas de uma forma geral - e mesmo nos ambientes acadêmicos - há uma dinâmica de reconhecimento/aliança entre iguais e hostilidade aos demais. Eu fiquei espantada de ver, na universidade, grupos compostos somente por alunos negros. Também não é raro ver bandos de gente loira de olho claro. Mulato, moreno, aqui não existe...

Eu, como branca, senti o politicamente correto como a vingança dos oprimidos: não o desejo de emancipação, mas de trocar de posição com os opressores. Da mesma forma aconteceu em relação a opções sexuais. Pela primeira vez na vida, eu, heterossexual, me vi como minoria! No meu departamento, sei lá por quê, a maioria dos homens e mulheres é gay. No começo achei o máximo o fato de todo mundo se assumir sem muitos problemas, até eu perceber que eu estava sendo vítima de discriminação! O reconhecimento dos "iguais" funciona como uma senha - você é gay, você é automaticamente incluído. Você é straight (hetero), você tem de provar que, apesar disso, você é legal.

Há exceções? Claro. Quase todos os meus (bons) amigos gays são totalmente contra o politicamente correto. Os mais hostis são também aqueles que rezam pela cartilha de "política de identidade", traduzida, no caso, por disciplinas acadêmicas com o nome de "Queer Studies" e "Gender Studies".

Já estava certa de que o politicamente correto não tinha nada de correto, até o belo dia em que parei no sinal vermelho ao lado de uma reluzente BMW (eu estava dirigindo o meu Chevrolet 91). Ao volante, um jovem negro, vistoso, bonito, elegante. Essa cena não tem nada de incomum por aqui, e foi exatamente isso que me ocorreu naquela hora. Negros com carros novos, belas casas, bons empregos - isso se vê a toda hora por aqui. Na universidade em que faço pós (com bolsa integral e ajuda de custo), os alunos de graduação pagam quase 30.000 dólares por ano. Há quase tantos alunos negros quanto brancos. Quantos alunos negros havia na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, onde me formei? Eu me lembro de dois - dois estudantes de intercâmbio africanos. Dois em quase mil alunos.

Fiquei pensando: alguma coisa deve haver de correto nesse sistema em que, apesar dos preconceitos, do histórico de escravidão, das desigualdades, há possibilidade de ascensão social e material (o que, no sistema capitalista, se traduz em emancipação…) A luta pelo reconhecimento dos direitos dos negros, historicamente intensa e mobilizada por aqui, está na raiz tanto da conquista de direitos materiais quanto do politicamente correto, que apareceu depois, como uma de suas ramificações.

O politicamente correto, por aqui, não é o anti-racismo - é o racismo exacerbado, o direito de ser racista estendido às vítimas de discriminação. Os Estados Unidos são terrivelmente racistas. E não estou falando só desse racismo "de vingança". Os brancos são racistas, as pessoas não se misturam, os loiros ficam cada vez mais loiros, não há mulatos, morenos, meio-termo; não há ambigüidades, transição, indefinição. O politicamente correto é xiita, injusto, muitas vezes imbecil; mas, por outro lado, os Estados Unidos precisam disso para controlar a violência "intrínseca" da sua sociedade. Se existe o politicamente correto, é porque existe algo de incorreto a ser controlado. Às vezes, ouço comentários ou piadas que escapam ao controle e penso como isso aqui seria sem esse tipo de "patrulha". Basta ver o que é que os opositores do politicamente correto têm a dizer. A maioria desses opositores corresponde à ala mais conservadora, exclusivista, injusta e discriminatória da sociedade norte-americana. Criticam o politicamente correto não pelos direitos que ele tolhe: para eles, o problema são os direitos que ele fez possível.

Bom, se é essa a alternativa, prefiro a patrulha ideológica...

Por fim, fiquei pensando no Brasil. A gente tem um povo todo misturado, e dizer que se tem um pé na cozinha virou moeda social (vocês devem se lembrar do FHC…). Tudo bem, na FAU não havia negros, mas havia um montão de mulatos, de gente com ascendência indígena, negra, européia, quatrocentona… a gente cresce junto, tudo igual e tudo diferente ao mesmo tempo. Aqui nos EUA, os morenos são imediatamente "classificados" (como negros ou hispânicos). Há racismo no Brasil, mas não há um décimo da hostilidade aberta e onipresente daqui.

Não sei até que ponto a miscigenação no Brasil compensa a discriminação velada, pela qual os negros acabam sendo também os pobres. Não sei se a rigidez social dos EUA, a ausência de mistura e a hostilidade aberta funcionaram, dialeticamente, como motivação para as lutas de emancipação. Mas o meu lado otimista me diz que os dois países teriam muito a aprender um do outro - aprender das conquistas e também dos defeitos -, e que, nessa história de politicamente (in)correto, nada é totalmente claro e definido como, digamos, preto no branco...

Daniela Sandler
Rochester, 14/5/2001

 

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