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Quinta-feira, 15/8/2002
Diário do Farol, de João Ubaldo Ribeiro
Ricardo de Mattos

. O homem é o necessário câncer da terra

Esta afirmação encontra-se na página 266 do Diário do Farol, de João Ubaldo Ribeiro, lançado em março último. É seu primeiro livro que leio, mas acompanho sua coluna dominical no Estadão desde a primeira, o que significa uma assiduidade de prováveis dez anos. Talvez em decorrência deste acompanhamento eu tenha adiado a leitura dos livros, pois como cronista o autor anda fastidioso, repetitivo, e tal ânimo deve ter contaminado minha disposição. Calculei até que ele morrendo, ou ganhando o Nobel, alguma editora lançaria sua Obra Completa e eu poderia então fazer uma leitura em bloco.

Entretanto, João Ubaldo Ribeiro está vivo, não ganhou o Nobel, e recebi um exemplar do Diário para ler. Sabia já da desenvoltura intelectual e cultura do escritor, e por isso mesmo impliquei-me com suas crónicas: por algum motivo ele fica aquém do que pode ir. Quando não mantém um rame-rame político, cria os terríveis diálogos "Num Boteco do Leblon", nos quais o coloquial cede ao vulgar. O seu último livro, porém, mostra o quanto o autor pode fazer, ainda que o quarto final perca o ritmo e o desfecho seja inferior ao prometido, decaindo para uma mistura de Zíbia Gasparetto e Marquês de Sade (o marquês é citado nominalmente, inclusive).

Para uso próprio, dividi a obra em 31 capítulos. A narrativa é contínua, mas a cada número de páginas há pequenas pausas no texto, nas quais incluí um número. O próprio personagem diz estar dactilografando seu livro (pág. 179), e esses intervalos dão a impressão de sua quota diária. Trata-se da autobiografia de um padre cuja vida foi orientada para o alcance de dois objectivos (mesmo o segundo tendo surgido de forma acidental no decorrer da narrativa): matar seu pai e a mulher que o desprezou. Apesar da ausência de datas, ele afirma ser proposital esta lacuna, informa ter sessenta anos completos (pág. 14), e esse dado permite-nos localizar seu nascimento na década de quarenta do século XX.

Ao ler as resenhas sobre o Diário, imaginei tratar-se de obra semelhante à Memórias do Subsolo (ou do Subterrâneo), de Dostoievski, mas enganei-me. O autor russo criou um pateta antipático, ao qual falta um serviço mais consistente a ocupar-lhe a vida. O funcionário russo teria o Padre, um virtuose do ódio, como ídolo, caso o conhecesse.

O narrador é anónimo, assim como seus pais. Os locais são precariamente definidos, e o que lhe interessa é contar sua história sem maiores dispersões. Directo e objectivo: eis seu modo de escrever. Abomina não só as entrelinhas, mas quem as procura (pág. 236). "Exige" crédito em cada facto narrado, narrativa esta entremeada de trechos nos quais se dirige sem cerimónia ao leitor, muitas vezes ofensivamente: "... se você não for realmente muito burro ou burra ..." (pág. 235).

Ao matar-lhe a mãe e trocá-la por uma madrasta de temperamento oposto seu pai desperta-lhe logo cedo tais ódio e rancor, que o parricídio não é decidido, mas descoberto como consequência natural aos maus tratos infligidos. Em sua infância, o Padre não recebia da família o tratamento que se espera. Era tido como um incómodo, alguém a que se não podia permitir vínculo algum, para não acostumar mal. Tanto fazem entre espancamentos imotivados e desrespeito moral, que aos dez anos o personagem decide ser definitivamente mau, alegando não ter a Vida apresentado-lhe motivos para agir em contrário. Antes disso, escolhe a dissimulação (no velório da mãe), mas tenho impressão de que tal raciocínio em um menino fere a verosimilhança mencionada logo nas primeiras páginas. Na velhice chega à conclusão: Bem e Mal são coisa única. Essa afirmação não é feita de acordo com o argumento vulgar tão em voga segundo o qual "o que é bom para mim pode não ser para você", nem também a historinha de "duas faces da mesma moeda". Bem e Mal são uma coisa só, e essa coisa pode nem existir, pois a conduta do Padre privilegia o Útil, opta pelo Eficaz, radicalizando os argumentos do Cardeal Mazzarino em seu Breviário dos Políticos. Este apego ao Útil permite-lhe o uso de pessoas, mesmo que nada tenha contra elas, como será demonstrado em relação ao seu colega Virgílio, no episódio da perseguição ao padre Corelli. O Útil, enfim, leva-o a aceitar o mundo em sua realidade. Não é perfeito, mas nele, as personalidades doentias como a sua encontram lugar para pleno desenvolvimento.

Dentro de casa suas primeiras vítimas são seus irmãos unilaterais, escapando-lhe a madrasta, morta no parto do segundo filho. Como as crianças eram tratadas com mamadeira, prepara-lhes o envenenamento. No duplo puericídio, dois pontos chamam a atenção. Um, é a primeira vingança directa contra seu pai, pois fê-lo sentir a mesma impotência experimentada quando menino, ao vê-lo trazer sua mãe morta sobre a sela do cavalo. Sabia ser o pai o assassino e nada podia fazer. Este vendo-se na mesma situação, pode apenas expulsar o filho de casa. Dois: o privilégio do Útil é constatado quando o vemos encarar com indiferença a prisão e morte da única empregada que o tratava bem e tentava compensar-lhe a falta materna.

Da mãe, pouco se sabe. Sua actuação é maior depois de morta, nas constantes conversas com o filho, num recurso ao fantástico. Lembro-me de do autor ter contado em crónica sobre uma visita feita a um centro espírita em certa época de sua vida, não muito distante no tempo. Gostaria de saber se teve contacto com livros de espiritismo e se foi neles que colheu subsídios para criar esta personagem. O contacto com o além reforça a solidão do Padre em meio aos terrenos, solidão apontada como irreparável, na página dez.

O parricídio é certo, mas demorado. Ocorrendo, revela-se frustrante. Tanto discursou o personagem, tanto discutiu com o espírito materno, tanto tal sombra reiterou-lhe o sucesso, que imaginamos uma cena de marcante sanguinolência. Muita pólvora foi usada, mas toda ela molhada, resultando em uma detonação falha. Faz um pouco de barulho, e só. Ao entrar no quarto paterno, vomita-lhe todo o ódio acumulado, confirma o duplo infanticídio, e informa-lhe do assassinato que se aproxima. Executa o crime sufocando o pai com um travesseiro. Está certo que havia uma lógica a seguir, a culpa a esconder, mas mesmo assim... Por isso falei da inconsistência do quarto final. Nas páginas 242/253, há a descrição pormenorizada do relacionamento do Padre com uma secretária, Dona Vilma. Da narração deste caso, com a lógica de um filme pornográfico, não se tira consequência alguma para a trama. É um excesso que poderia ser substituído por um incremento ao parricídio, ou mesmo que fosse simplesmente extirpado, não faria falta. Melhor caracterização do personagem? Não, porque àquela altura já se tem perfeita ideia a respeito dele. Ataques à Igreja Católica? Não também, pois ele avisa não ser esta sua intenção. O que incomoda, enfim, é que toda a obra foi elaborada visando este objectivo do Padre. Toda sua vida foi organizada para nada atrapalhar esta determinação.

Todavia, há uma possibilidade. Inaugura a obra o aforismo: "Não se deve confiar em ninguém". O Padre, na constante exigência de crédito, sempre lembra que o final, e só o final, pode ser falso. Se falso em relação à morte de Maria Helena, nada se perde. Se falso em relação à morte do pai, a frustração mantém-se. Se falso em relação aos dois casos (sugere que seu auto exílio na ilha pode ser falso, e ele pode ser um louco a escrever do manicómio) a obra perde seu sentido.

Já o assassinato de Maria Helena ocorreu em conformidade com o espírito doente do Padre. Esta mulher quase o faz abandonar a vida clerical, e desconfia-se que o homicídio paterno também seria afastado do plano inicial. Após ter "aberto a guarda", o Padre é rejeitado e os argumentos usados por Maria Helena parecem recolhidos pelo escritor nas ruas, de gravador em punho. Que a desforra do Padre não vire moda. Há uma breve ladainha sobre a falta de palavra que melhor descreva a cena, e se foi intenção do autor, neste ponto, realçar o desequilíbrio do sacerdote, conseguiu.

Encerra o livro a seguinte observação: "De qualquer forma, é bom lembrar que, mesmo eu morto, alguém como eu sempre poderá estar perto de você".

Para ir além





Ricardo de Mattos
Taubaté, 15/8/2002

 

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