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Quarta-feira, 21/8/2002
Salve sua alma, se ainda for possível!
Rennata Airoldi

É inquestionável a qualidade dos trabalhos do Grupo Tapa que, dirigido por Eduardo Tolentino, está em cartaz no Teatro Sérgio Cardoso, mostrando parte de seu repertório. São as peças: "Major Bárbara", "As Viúvas", "Contos de Sedução" e "Tambor e o Anjo". Para quem não conhece o trabalho do grupo, é uma oportunidade única de conhecer a forma ímpar de lidar artisticamente com uma obra que une a tradição do teatro naturalista com a deliciosa e delicada interpretação dos atores.

O Tapa desenvolve há anos essa linguagem próxima da nossa realidade com extrema maestria nos detalhes. São eles que fazem a diferença, em todos os aspectos da peça: figurino, cenário, luz, som e construção das personagens. A sutileza é o tempero certo. Muitos grupos dizem fazer uso do naturalismo ou realismo em suas peças, mas para se apropriar realmente desse gênero é muito difícil. Na verdade, a maioria dos grupos não fazem nem uma coisa nem outra, quando tentam chegar ao requinte desta linguagem, por se tratar de algo aparentemente fácil. O "Naturalismo", que é muito próximo de nosso cotidiano, se realizado sem o embasamento necessário, passa muitas vezes por uma peça sem vida, sem tônus, monótona, quase uma telenovela sem "zoom".

"Major Bárbara", de George Bernard Shaw, é uma verdadeira obra de arte! Comédia que conta a história de Bárbara, uma jovem rica que converte-se ao exército da salvação. Seu trabalho voluntário é salvar as almas perdidas, ajudar aos necessitados, ensinar-lhes fé e pregar o amor. Ensinar sobre um só Deus e sua generosidade, saciar a fome dos desamparados nos abrigos. Ao mesmo tempo, é filha de um grande fabricante da indústria bélica e por ele é sustentada. Como o texto mesmo diz, a pobreza sustenta a riqueza e vice-versa.

Em meio a discussão sobre a moral do ser humano, estabelece-se um pacto entre Bárbara e seu pai: se propõem a conhecer o trabalho um do outro. Primeiro, visitam o abrigo do exército de salvação, marcham juntos, recuperam as pobres almas perdidas. Depois, uma visita à grande fábrica de canhões. A tese da peça fica clara à medida que vai desvendando o "abrigo", o trabalho voluntário, a luta por justiça e, principalmente, como fazer para sustentar essa nobre ação. Não há a quem recorrer senão aos homens de bem que detêm o poder. Quem são os donos do dinheiro? Os donos das indústrias de bebida e de armas! E a questão é: seria esse dinheiro menos sujo se utilizado para manter uma causa nobre? Ou causa nobre deve depender apenas de "fontes" limpas?

É surpreendente a discussão. As almas serão salvas graças ao dinheiro daqueles que ajudam a degradar a sociedade. E Deus nisso tudo? É mais fácil convencer (e converter) um bando de esfomeados e miseráveis do que todos aqueles que possuem uma vida "digna". O que vale mais: o dinheiro, o poder ou a fé em uma causa humanitária a ser defendida? A Moral e valores adquiridos por cada sociedade são sempre uma via de mão-dupla. O certo e o errado dependem muito do ponto de vista.

Mais uma vez, devo dizer que redigir uma simples resenha é restringir demais a obra. Esta coluna é só um aperitivo para aquilo que os espectadores degustarão ao assistir "Major Bárbara". A interpretação dos atores é impecável e a direção estabelece uma unidade perfeita entre a linguagem e os elementos que compõem a cena. Em vários momentos, temos a impressão de estar apreciando uma verdadeira pintura tamanha beleza da composição cênica. Não é à toa que a peça foi vencedora do prêmio APCA (Associação Paulista dos Críticos de Arte) de 2001, como melhor peça adulta e melhor ator para Zécarlos Machado.

Por fim, a peça deixa no ar a seguinte questão: quanto vale o desejo de um homem? Acredito que, no fundo, a maioria de nós tem, em maior ou menor grau, a mesma Síndrome de "Major Bárbara". Querendo salvar almas e negando tudo aquilo que possa comprometer nossa moral e nossos bons costumes. Santa hipocrisia! Poucos assumem o preço pelo qual aceitam vender sua própria alma.

"Major Bárbara" está em cartaz no Teatro Sérgio Cardoso, de sexta a domingo. Sextas e sábados às 21hrs. e domingos às 18hrs. Para maiores informações sobre todos os espetáculos do Grupo Tapa (e respectivos horários), é só ligar para: 288-0136.

Boletim da Mostra
Continua em grande estilo a "II Mostra de Teatro 'Cemitério de automóveis'". Esta última semana foi a Semana dos Encenadores, que trouxe peças de Mário Bortolotto dirigidas por outros profissionais. "Gravidade Zero", monólogo interpretado por Rodrigo Matheus e dirigido por Elias Andreatto, foi a grande surpresa. O texto trata de alguém descontente com a necessidade de segurança que as pessoas têm perante a vida. Um homem que não consegue manter seus pés no chão (como é esperado dos homens sensatos). "A segurança é um câncer": utilizando de uma linguagem poética, o texto trata metaforicamente de questões inerentes à alma humana.

A peça é rápida, estonteante e lírica. O ator, que se movimenta sobre uma estrutura metálica presa por cordas, solta no ar, consegue manter a platéia o tempo todo sob uma certa vertigem. As imagens se fazem e se desfazem dando a impressão que estamos todos "sentados" no ar. Sem dúvida, é mais um texto surpreendente de Mário Bortolotto, sob a sua delicada e minuciosa direção, com uma atuação precisa e tocante.

Por fim, o destaque foi para a última estréia da mostra: "Fábula Podre", que estreou ontem às 19hrs. e que passa a se alternar às terças-feiras no mesmo horário com "Postcards de Atacama". Para conferir a programação até o dia 29 de setembro, acesse o site: www.cemiteriodeautomoveis.hpg.ig.com.br

Rennata Airoldi
São Paulo, 21/8/2002

 

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