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Terça-feira, 27/8/2002
Pensando sozinho
Evandro Ferreira



No Brasil de hoje, a luta do indivíduo contra a coletividade é um assunto que foge ao imaginário da grande maioria das pessoas. Se quisermos ser entendidos numa roda de amigos, precisamos processar o discurso através dos clichês habituais e definir o tema como a luta da individualidade contra a massificação, ou melhor ainda, a fragmentação da identidade.

Esta última expressão é perfeita nos moldes acadêmicos socialmente estabelecidos, por dois motivos. Primeiramente, a ausência do termo "luta" sugere uma barreira de inevitabilidade que, na melhor das hipóteses, exigiria uma concentração coletiva de forças para ser transposta. Em segundo lugar, o termo "identidade" é suficientemente vago para que se confunda identidade individual com identidade coletivamente construída. Esses dois elementos, conjugados de maneira efetiva, garantem a obscuridade da exposição teórica e impedem o leitor de perceber que, se há uma solução, ela não vai ser alcançada mediante a dissolução das consciências em uma massa teórica uniforme que se afirma contra um tal de pensamento único. Não vamos acabar com a criminalidade vestindo algumas centenas de pessoas de branco e saindo às ruas para pedir paz. Não vamos acabar com a desigualdade organizando movimentos de apologia das periferias etc etc. Tudo isso por um simples motivo. Todas essas pseudo-soluções são, na verdade, movimentos coletivos que reivindicam algo. Apenas reivindicam. Mal sabem por quê. E os discursos criados por esses movimentos só poderiam espelhar o que eles são. Portanto, são discursos vazios, que reivindicam algo com ímpeto, certeza e revolta, mas não conseguem encontrar uma fundamentação teórica que vá além do discurso político do "exerça sua liberdade, vote com consciência".

Que liberdade temos hoje? A de escolher entre um candidato de esquerda, um de esquerda light, outro de esquerda doida e outro de centro-esquerda? Bem, minha resposta é: não, obrigado. E a resposta do Estado é: sua resposta não vale, pois você é obrigado a votar em mim, pois só eu existo, cara pálida.

E minha réplica é: não, apenas o indivíduo existe concretamente. O resto são abstrações úteis a diversos fins.

E o indivíduo está sempre tentando se reafirmar. Ele passa por grandes períodos de dificuldade, mas de repente volta com força renovada, mostrando que sua luta, ainda que passe despercebida, continua eternamente.

A mais recente prova disso é o caráter da evolução da Internet. Quanto mais os intelectuais tentam transformá-la no espelho de suas teorias, mais ela se debate e se nega a ser reduzida a um conjunto de "comunidades virtuais" ou "províncias de significado". Por exemplo, em resposta às teorias acadêmicas que reduzem a rede a apenas mais um lugar de reunião de coletividades que lutam por auto-afirmação, a web apareceu com esse tal de "blog". O que poderia ser mais antagônico ao coletivismo emburrecedor do que um diário pessoal onde o indivíduo insere seus comentários mais singelos sobre cada coisa que vive em seu cotidiano? O blog é um verdadeiro exercício de autonomia cognitiva. Por mais que o autor de uma página dessas tente ecoar sempre as mesmas bobagens do senso-comum, não consegue e acaba deixando passar alguma opinião realmente pessoal.

Os blogs estão se multiplicando rapidamente, e em muitos deles encontramos informações e reflexões que passam longe do campo de possibilidades da mídia impressa e da televisão. Isso ocorre porque a Internet não cria barreiras corporativistas que impedem a liberdade de expressão. Não cria ainda, pois o Estado já está de olho nela. Já ouviu falar da "inclusão digital"? Pois é. Pesquisei no Alta Vista e encontrei quase dois mil resultados.

E como são essas barreiras? Bem, a coisa é simples. Um exemplo: você é um colunista que escreve na Internet, contra a regulamentação da profissão de, digamos, designer. Então, aparece algum membro revoltado de uma "comunidade virtual" que é a favor da tal regulamentação e se inicia uma briga livre entre duas pessoas livres. Mas então eu pergunto. E se houver uma lei de inclusão digital que impeça as pessoas, por exemplo, de expressar qualquer tipo de "preconceito" contra qualquer "comunidade virtual"? Então a luta que antes era entre pessoas, passa a ser entre cidadãos, não é mesmo? E cidadãos são obrigados - por sua própria condição ou definição - a resolver seus problemas no tribunal, através da lei. Ops! Voltamos ao Estado. Voltamos à pressuposicão de que a lei resolve tudo. Estamos presos dentro do círculo do coletivo. Somos cidadãos. E cidadão são do Estado, já sabia Platão.

Butler Shaffer, em seu último artigo (indicado a mim pelo leitor Toni), diz que "em graus variáveis, todo sistema político é naturalmente coletivista, e cada um deles pressupõe a centralização da autoridade estatal sobre as vidas e a propriedade dos indivíduos. O comunismo é apenas a forma mais agressiva e extensa do socialismo estatal. Mas toda forma política se funda na crença de que é direito o Estado apropriar-se antecipadamente da autoridade decisória dos indivíduos". Logicamente - e isso Shaffer também observa - que precisamos nos reunir em grupos, pois o homem é, afinal de contas, um ser que vive em sociedade. Entretanto, o que temos em comum, segundo o autor, é a necessidade mútua de defender nossas individualidades diante de um fato social estabelecido: o condicionamento de pensar que apenas agindo coletivamente conseguiremos obter bons resultados diante dos problemas do mundo. Somente cientes desse fato é que os indivíduos conseguem formar coletividades atuantes que não estejam fadadas a se sobreporem posteriormente às próprias pessoas que as criaram.

Relativamente a essas reflexões, podemos falar do fenômeno da proliferação de blogs e de páginas pessoais ou de pequeno porte, pequenas revistas eletrônicas ou simplesmente sites de crítica à imprensa, à universidade e, enfim, às idéias da intelectualidade homogeneizada que domina o debate público nas TVs e nos jornais do Brasil e do mundo, ou como se costuma chamar, a formação de opinião hoje.

E quando falo isso, não estou me referindo à alegação consensual de que grandes corporações dominam a mediação da informação e que a Internet estaria fazendo frente a isso. Realmente, a informação hoje é mediada por grandes empresas. Contudo, isso está longe de ser um problema para a intelectualidade acadêmica, pois as grandes empresas há muito já se acostumaram a ecoar o pensamento "neomarxista" ou "neo-socialista" cada vez mais mais forte na América Latina. Quem duvidar disso pode abrir qualquer caderno cultural e ver que tipo de livro editado ou traduzido nesse país recebe mais atenção dos resenhistas. A única barreira que ainda existe é a do mercado, pois os jornais e revistas precisam vender. Se não precisassem vender, poderiam ser todos como a Caros Amigos. E este é o sonho de quase toda a intelectualidade.

Estou me referindo, então, a um tipo de indivíduo praticamente isolado que acredita que é possível lutar contra as grandes corporações e contra o coletivismo a serviço do qual elas estão. Esse indivíduo está duplamente isolado, pois não tem a seu lado nem o Estado que lhe paga um salário e nem as grandes corporações (de negócios ou de ensino) que financiam os projetos que, em última instância, visam a própria condenação delas.

Sobre esse indivíduo e seus conflitos pessoais, pretendo falar no próximo artigo, com base - entre outras coisas - em minha experiência própria.

Evandro Ferreira
Belo Horizonte, 27/8/2002

 

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