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Sexta-feira, 13/9/2002
Três Idiotas
Alexandre Soares Silva

Só existem três idiotas no Brasil? Não, claro que não. Mas temos que começar por alguém...

1) Fernandinho Beira-Mar - Porque todo traficante é idiota. Francamente, já estava na hora de alguém dizer isso de um criminoso – que ele não é terrível, que é só idiota. A vulgaridade de um criminoso não é menos intensa do que a de um corredor de Fórmula Um, por exemplo. Não, de modo algum. Qualquer pessoa que viva por escolha própria (e sempre é escolha própria) no ambiente encantador do Comando Vermelho, ou frequentando o charmoso círculo social de Bangu I, é um idiota. Repare: o escritor Vladimir Nabokov teve que fugir da Rússia e da Alemanha sem dinheiro algum, sobrevivendo mal e porcamente dando aulas disso e daquilo. Em outras palavras, fugiu da Rússia Soviética como Fernandinho Beira-Mar fugiu do útero da mãe – pobre e em situação desesperada. Assim chegou Nabokov aos EUA, e Fernandinho ao mundo. Mas enquanto Nabokov pôde dizer, na velhice, que sua vida tinha sido como um pão fresquinho coberto por mel dos Alpes e manteiga caseira, Fernandinho só pode dizer que sua vida foi como uma tartine de merde que ele teve que comer lentamente – nos forçando a dividir tudo.

2) Gilberto Felisberto Vasconcellos – Gilbert K. Chesterton adorava São Francisco de Assis. Você pode não ter essa mesma adoração, eu deixo; mas convenha que está bem escolhido. A menos que você seja um contumaz chutador de santas, um fanático anti-santidade, um odiador de animais e poesia, você tem que concordar comigo que São Francisco de Assis foi não só um grande homem, mas um homem que merece a sua veneração e (sim, sim, não tenha medo, não dói) amor.
Gilberto Vasconcellos, professor e jornalista da Caros Amigos, adora Getúlio Vargas. Não tenho muita coisa contra Getúlio Vargas, basicamente porque o acho chato demais para querer saber os pequenos fatos sórdidos que sem dúvida existem contra ele. Só digo que se algém escolhe Getúlio Vargas, entre todas as pessoas da humanidade (Da Vinci, Flaubert, Sócrates...- pegou a idéia?), para ser o centro de uma paixão monomaníaca, essa pessoa é justamente isso: idiota.
Disse “monomaníaca”? Ah, esqueci – Gilberto também é apaixonado por Glauber Rocha, biomassa, Marx. E pode falar durante horas sobre as vantagens da farinha de mandioca.

3) Ferréz – Assim mesmo, só um nome, como uma modelo da década de cinquenta: “Ferréz” (isso, como no caso de Sousândrade, já diz tudo). Ia dizer que Ferréz é uma espécie de sub-Genet, que já era uma espécie de sub-Villon; mas acho que a tradição literária é outra. Começa com Agatha Christie, vejam. Ela era odiada (por Edmund Wilson, Raymond Chandler, e tantos outros homens sérios e fundamentalmente broncos) porque seus criminosos eram arqueólogos, estrelas de cinema, e coronéis excêntricos com remendos de couro nos cotovelos. Daí surgiu Dashiell Hammett, um homem rude (intelectuais, já se sabe, preferem homens rudes a velhinhas doces), ex-detetive, durão, desagradável. “Hammett”, escreveu Raymond Chandler com ódio de Agatha Christie, “devolveu o crime para onde ele pertence: para as ruas”. Por acaso, Hammett não escrevia muito bem, e vem sendo menos lido a cada ano. Mas Hammett teve um seguidor de gênio, o próprio Raymond Chandler, que era um estilista de gosto tão perfeito que, por mais que tentasse ser sórdido como Hammett, só conseguiu ser muito mais romântico do que Agatha Christie. Não, Chandler é muito mais romântico até do que Byron.
O próximo passo nessa jornada que nos leva ao Capão Redondo (você está com medo? Segura na minha mão) passa por Rubem Fonseca, que ignorou Chandler e preferiu escrever como Hammett. E escreveu: mal e sordidamente. Aquela cena do testículo arrancado e pisoteado em “Buffo e Spalanzani” é sórdida como a presença nua e barbada de Paulo César Pereio num filme de Neville D'Almeida. E Rubem Fonseca (a.k.a. “o Rubem”, para os íntimos) gerou, como todos sabem, Patrícia Melo, a verdadeira Musa da Casa de Detenção. Assim, de degrau em degrau, vamos descendo a escadaria torta da favela. Cuidado com a poça de xixi. Eis que os amigos do Paulo Lins e do Ferréz nos páram com walkie-talkies e perguntam aonde vamos. Isso eu não sei, mas olho pra trás e vejo a country manor de Agatha Christie lá em cima, e sinto falta do ponto de partida. O Coronel Musgrove já deve achar que estamos mortinhos. Raymond Chandler arrependidíssimo de nos ter indicado este caminho. Roendo as unhas.
Bom, Ferréz como escritor. Escreve em patois, sobre a “condição em que ele vive”. Um trecho: “As mina só na encolha, pagando simpatia, os maluco lá fora do outro lado da avenida, só na brisa. Volto do rolê lá pra 6 da manhã, num vi o show do Apocalipse, nem do SNJ, tô chateado...” Mas ninguém nem fala de seu livro, “Capão Pecado”, porque estão mais interessados na “condição em que ele vive”. Eis uma boa regra: se você está mais interessado na condição de vida do que no livro de um escritor, esqueça o escritor.

Alexandre Soares Silva
São Paulo, 13/9/2002

 

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