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Terça-feira, 17/9/2002
Capitalismo sob fogo cerrado
Evandro Ferreira

Os sebos são curiosos. Quanto melhor o livro, mais barato ele costuma ser nesses lugares. O critério de valoração do preço é, como não poderia deixar de ser, a oferta e a procura. Portanto, se o número de pessoas que procuram um determinado tipo de livro é pequeno, então o preço será baixo, independentemente da qualidade do mesmo. De fato, constantemente me consolo nesses lugares, quando vejo que as "pérolas" que encontro estão sendo vendidas por um preço quase módico. É sinal de que não estou com a maioria. Não estou procurando "O mundo de Sofia", os livros da coleção "Zero à esquerda" ou os maravilhosos intelectuais neo-esquerdistas da Companhia das Letras, como Edward Said e Susan Sontag.

Recentemente me deparei com "Economia numa única lição", de Henry Hazlitt. O preço era 4 reais. O livro da escola austríaca de economia, se aqui no Brasil pode ser encontrado empoeirado numa estante de sebo, cheirando a óleo de cozinha da lanchonete do primeiro andar de um prédio do centro da cidade, no exterior é re-editado com todas as honras, edição comemorativa de 50 anos.

O sortudo naquele sebo fui eu. E o azarado foi o Brasil, que esqueceu tudo que ali está escrito, ou melhor, nunca sequer tomou conhecimento, senão através de indivíduos isolados e sem voz, abafados pelos sons da multidão barulhenta a gritar por intervencionismo estatal. Do Barão de Mauá ao World Trade Center, a iniciativa privada sempre levou a pior. E como se isso não bastasse, ainda leva a fama de ser a culpada de tudo. Mais ainda em um país desmemoriado, que chama de neoliberalismo a economia mainstream. Pensei nisso quando encontrei por acaso, nos arquivos do Estado de S. Paulo, uma sugestiva matéria com Pedro Malan, intitulada Nunca fui um liberal ou neoliberal. Um trecho: "o ministro da Fazenda, Pedro Malan, se define como um social-democrata". Logicamente que a esquerda interpretou tudo como um joguete político. Afinal, Pedro Malan é neoliberal e ponto final. E, para entender o motivo pelo qual as esquerdas brasileiras não sabem nem o que é neoliberalismo, basta resgatar o outro comentário de Malan: "rejeita o rótulo de neoliberal e cobra da esquerda brasileira uma reciclagem que a sintonize com o século XXI e a capacite ao eventual exercício do poder no Brasil. 'Faria um bem enorme ao País a existência de uma esquerda não-anacrônica'". Um bem enorme eu não sei se faria, mas ao menos as pessoas saberiam que existem esquerdistas que querem uma espécie de URSS brasileira e esquerdistas que querem o governo mundial da ONU.

A entrevista evidencia um fato curioso. No Brasil de hoje, o debate entre a esquerda anacrônica e a nova esquerda é vendido pela mídia e pelos protagonistas como o debate entre, respectivamente, os arautos do futuro e os "neoliberais". Neoliberal aqui é FHC. E nova esquerda é Lula. E os estrangeiros devem ficar rindo de nós quando vêem nossos jornais "de direita" veicularem matérias compradas do New York Times, jornal "liberal" - em inglês - termo que significa "esquerdista" em português.

A lição a ser tirada de tudo isso é que, se no mundo inteiro o capitalismo está sob fogo cerrado, no Brasil ele mal existe e está sob ataque ainda mais forte.

Como bem observou Lew Rockwell em recente artigo, "os comerciantes, como classe social, estão sob fogo cerrado, exatamente como estiveram ao longo da história, durante períodos de queda da economia". Se isso acontece nos EUA, imagine aqui. Nas torres do World Trade Center estavam dezenas de empresas que tiveram de arcar com os prejuízos sozinhas. Os comerciantes, bem como os contribuintes, sempre têm de arcar com os prejuízos sozinhos. E o Estado nunca deixa de recolher os lucros. As pessoas que morreram no 11 de setembro eram, em sua grande maioria, comerciantes, empresários, pessoas que trabalhavam no ramo dos negócios, na iniciativa privada. E essas pessoas, como observa Lew, não tiveram suas profissões homenageadas, ao contrário dos bombeiros e policiais envolvidos na tragédia. Moral da história: o Estado sabe homenagear os seus. Aos demais, encargos de todo tipo. É verdade que todas as famílias das vítimas foram auxiliadas com pensões gordas. Mas as vítimas foram homenageadas como cidadãos norte-americanos, nunca como executivos ou empresários, profissões que hoje em dia são estigmatizadas como símbolo de ganância e poder.

Não que eu morra de amores pelos executivos. Mas, afinal, que classe não tem seus imbecis? A imbecilidade é um fenômeno humano. E somente ela mesma é capaz de fazer as pessoas acreditarem que as classes letradas também não estão dominadas por imbecis. O militante petista que olha, com ar de superioridade, para um boyzinho engravatado mal sabe o quanto se parece moralmente com ele, embora esteticamente seja tão diferente.

E o livro de Hazlitt? Onde entra?

Desmistifica assuntos tão atuais, que até assusta pensar que foi escrito há mais de 50 anos. Alguns exemplos: o mito de que obras e iniciativas públicas geram mais emprego do que a iniciativa privada geraria caso não tivesse de bancar os gastos do Estado com tais obras; a ilusão de que uma lei instituindo um salário mínimo aumenta necessariamente o bem-estar social; o fetiche do pleno emprego; a crença de que estimular o consumo faz a economia crescer; o mito de que se pode aumentar as exportações sem aumentar as importações.

Não vou analisar aqui cada um desses assuntos. O mais importante é ressaltar a lição do livro, que tem aplicações práticas que passam longe da cabeça de muita gente. A lição é a seguinte: "a arte da economia está em considerar não só os efeitos imediatos de qualquer ato ou política, mas também os mais remotos; está em descobrir as consequências dessa política não somente para um único grupo, mas para todos eles". Um belo exemplo disso é a defesa da reforma agrária nos moldes do MST, beneficiando a criação de pequenas propriedades e da agricultura de subsistência. Bom para algumas centenas de famílias que vivem no campo? Sim. E ruim para alguns milhares que vivem nas cidades. A ação do Estado na economia é algo que, no Brasil, só tem defensores e nenhum opositor. E os limites que ainda existem estão caindo rapidamente. E quando caírem definitivamente, muita gente vai ficar feliz achando que o Estado pode consertar "aqui" todas as bobagens que faz "ali". Mas a complexidade da economia, como ação humana que é, é tão grande quanto numerosas são as almas que vivem sobre a face da terra. Pois cada uma delas possui um fator de imprevisibilidade que é óbvio preço a se pagar pelo livre-arbítrio. E, conforme lembra o próprio Hazlitt, nenhum aparato burocrático é capaz de gerí-la melhor do que o livre-mercado. Ainda que este não seja perfeito, possui mecanismos muito mais eficientes do que a duvidosa capacidade dos burocratas de prever e planejar o que vai acontecer em todos os lugares e a todo momento. Mas a mentalidade anti-capitalista se funda sempre no mito da perfeição. E por isso acredita ser possível simplesmente abolir a economia. Afinal de contas, quem disse que o homem precisa de produtos e de dinheiro? Se os índios não precisam, por que nós precisaríamos? Raciocínios como esse passam pela cabeça de "economistas" brasileiros. E se baseiam na pressuposição de que temos o direito de mudar a vida de bilhões de pessoas simplesmente para salvar a de outras. E o livro de Hazlitt é sobre as falácias que foram criadas ao longo do tempo e que servem para justificar como luta pela erradicação da pobreza e do desemprego aquilo que, na verdade, é a intensificação desses dois problemas cruciais da sociedade moderna.

E cada vez mais pessoas hoje estão esquecendo o importante papel que o comércio desempenhou ao longo de milênios na história da humanidade. E cada vez mais indivíduos, iludidos pelas facilidades do mundo moderno (possibilitadas pelo próprio comércio), são incapazes de perceber o tamanho da liberdade que perderam em relação a seus ancestrais que podiam abrir um negócio onde bem entendessem e vender livremente seus produtos sem ter de pagar nada a ninguém e nem dar satisfação a ninguém.

Mas, infelizmente, para a mente maliciosa, todos os argumentos que reuní aqui em favor dos empresários caem facilmente diante da simples afirmação preconceituosa de que "empresário é tudo safado", ou "empresário quer sempre mais lucro". E esse é o grande desafio da ciência econômica: estudar a ação humana de forma neutra e responsável. Ser capaz de considerar que, assim como há empresários canalhas, há trabalhadores canalhas. Ser capaz de ver que a causa da pobreza de uns não é a riqueza de outros.

Mas esta é uma lição difícil de ser aprendida hoje em dia.


Evandro Ferreira
Belo Horizonte, 17/9/2002

 

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