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Terça-feira, 24/9/2002
Pierre Lévy em São Paulo
Raphael Perret

O que vem à sua mente ao ler a expressão inteligência coletiva? Se a resposta foi algo parecido com um cérebro gigante, capaz de tomar decisões a partir do conhecimento adquirido e compartilhado por diversas pessoas, não está muito distante da teoria do pesquisador e escritor francês Pierre Lévy. Trata-se, sem dúvida, de uma interpretação peculiar. Mas, simbolicamente, é isso mesmo.

Lévy esteve na quinta-feira, 29 de agosto, em São Paulo, no SESC da Vila Mariana, para apresentar uma conferência sobre as inteligências coletivas, sua principal área de estudo na Universidade de Ottawa, no Canadá. O autor de Cibercultura e O que é o virtual se sentiu em casa. "Tenho um passaporte francês, autorização para viver no Canadá e um coração brasileiro. Já aproveitei minhas estadias aqui para lançar temas que antes nunca havia discutido", confessou.

Inflado o ego da platéia, o franco-canadense-brasileiro foi mais direto ao assunto. Para ele, a inteligência coletiva (IC) é, basicamente, a partilha de funções cognitivas, como a memória, a percepção e o aprendizado. "Elas podem ser melhor compartilhadas quando aumentadas e transformadas por sistemas técnicos e externos ao organismo humano", explicou Lévy, referindo-se aos meios de comunicação e à internet.

Porém, o escritor deixou claro que a IC não é só isso: "ela só progride quando há cooperação e competição ao mesmo tempo". Para exemplificar, Lévy citou a comunidade científica, capaz de trocar idéias (= cooperar) porque tem a liberdade de confrontar pensamentos opostos (= competir) e, assim, gerar conhecimento. "É do equilíbrio entre a cooperação e a competição que nasce a IC", concluiu, deixando claro que não são apenas os cientistas que utilizam esse novo conceito: "as empresas necessitam cada vez mais de empregados que precisam lançar idéias e resolver questões coletivamente. As tecnologias atuais permitem isso".

É assim que nasce a IC, tecnologias atuais... Seria o objeto de estudo de Lévy um conceito novo, inexistente no período pré-internet? Segundo o pesquisador, não. A IC desenvolveu-se à medida que a linguagem evoluiu. A disseminação do conhecimento acompanhou a difusão das idéias através dos discursos, da escrita ("posso, hoje, ler Platão, mesmo que ele tenha escrito uma obra há mais de dois mil anos") e da imprensa ("quanto mais os meios de comunicação se aperfeiçoam, mais ganha a IC"). Hoje, a era é diferente. E inédita. "O mundo das idéias é o ciberespaço, que permite a interconexão e, portanto, a ubiqüidade. Ainda não conhecíamos essa situação", resume.

O escritor jura que sua teoria não nasceu por acaso e que ela não é fruto exclusivo de seus estudos. Ele apenas tenta adaptar a IC à atualidade social e tecnológica. De fato, a pesquisa de Lévy baseia-se em tríades inspiradas na conexão tripla entre o "signo, a coisa representada e a cognição produzida na mente", definida pelo semiólogo americano Charles Sanders Peirce.

Um exemplo? Para Lévy, a IC pode ser dividida em inteligência técnica, conceitual e emocional. A primeira corresponde à inteligência que lida com o mundo concreto e dos objetos, como a engenharia (coisa). A seguinte relaciona-se ao conhecimento abstrato e que não incide sobre a materialidade física, como as artes e a matemática (signo). A última, por sua vez, representa a relação entre os seres humanos e o grau de paixão, confiança e sinceridade que a envolve, e tem a ver com o direito, a ética e a moral (cognição).

Porém, a melhor ilustração da tríade de Peirce fica por conta da economia da informação descrita por Lévy. Segundo o conferencista, no mundo atual as idéias são o capital mais importante, e que só pode ser adquirido quando as pessoas pensam em conjunto. Para isso, é necessária a produção de três capitais:

(1) o técnico, que vai dar suporte estrutural à construção das idéias e pode ser exemplificado pelas estradas, prédios, meios de comunicação (coisa);

(2) o cultural, mais abstrato, representado pelo conhecimento registrado em livros, enciclopédias, na World Wide Web (signo);

(3) o social, que corresponde ao vínculo entre as pessoas e grau de cooperação entre elas (cognição).

O capital técnico gera as condições necessárias para a disseminação dos capitais cultural e social que, por sua vez, criam o capital intelectual, ou seja, todas as idéias inventadas e depreendidas pela população e que, uma vez expostas, passam ao domínio público. Esse capital, enfim, é o núcleo de toda a inteligência coletiva.

Lévy afirma que estamos apenas no início de uma nova etapa da evolução cultural. "A que tipo de civilização esse ambiente ecossistêmico de idéias vai nos levar?", provoca. Antes que alertem-no de que apenas 8% dos brasileiros têm acesso à Internet, ele dá sua opinião: "é claro que estamos longe do ideal, mas o índice de conexão no Brasil é notável. Não podemos esquecer que a escrita foi inventada há cerca de três mil anos, o alfabeto há mil e não é a totalidade do mundo que sabe ler e escrever".

Enfim, a teoria do pesquisador pode ser resumida na sua chamada ecologia das idéias, isto é, a relação bidirecional - e algo darwiniana - entre a população e as idéias. Se as pessoas (não) ajudam a reprodução de conhecimento, este lhe será totalmente (des)favorável. De outro modo, se as idéias (des)favoráveis são mantidas e disseminadas, a população (não) se reproduz. O papel da Internet é fundamental para o funcionamento desse sistema. "O ciberespaço é a principal fonte para a criação coletiva de idéias, de forma que elas sejam usadas para o bem de todos, através da cooperação intelectual", conclui Lévy, após 90 minutos de palestra.

A conexão cada vez mais densa entre os indivíduos realmente contribui para ações coletivas. O próprio Lévy dá exemplos em seu novo livro, Cyberdémocratie, de sites governamentais que se aproveitam da facilidade de comunicação com a população para debater temas relevantes para toda a sociedade. O crescente uso de ferramentas de groupware (tecnologias que auxiliam o trabalho cooperativo), que vão do prosaico correio eletrônico até sofisticados gerenciadores de workflow, também demonstra uma convergência necessária para a inteligência coletiva.

Entretanto, há muito ainda o que pensar. Todas as questões polêmicas e importantes que surgiram com o advento em massa da Internet envolvem-se diretamente com a inteligência coletiva: direitos autorais, software livre, weblogs, TV digital, educação à distância, jornalismo online são alguns dos assuntos relacionados à expansão do ciberespaço e merecem destaque. Fora outra infinidade de temas, claro. Não se pode resumir um estudo tão amplo a alguns triângulos e tentar enquadrar os tópicos da pesquisa em cada um dos vértices. A pesquisa merece aprofundamento.

E por que não um aprofundamento coletivo? Cada universidade poderia estudar uma das áreas citadas e, depois, reunir os resultados obtidos das outras instituições e alcançar conclusões. Ou seja, o destino é esse mesmo. Usar a Internet e as tecnologias atuais para a difusão e troca do conhecimento, de forma que cada um possa contribuir, do seu canto, no seu tempo, com sua idéia, com seu pensamento, com seu ponto de vista. Assim, será possível construir uma sociedade melhor planejada e, levando ao pé da letra, melhor pensada. Esse caminho pode até não ser seguido. No mínimo, deveria.

Nota do Editor
Texto originalmente publicado no blog Tá na Tela, gentilmente cedido pelo autor, Raphael Perret, que também edita o Butuca Ligada.

Para ir além






Raphael Perret
Rio de Janeiro, 24/9/2002

 

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