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Quinta-feira, 26/9/2002
Quando a incapacidade é valorizada
José Knoplich

A Organização Mundial da Saúde estima que mais de 10% da população mundial, 800 milhões de pessoas, têm uma acentuada incapacidade (física ou mental), sendo que 80% deles vivem nos países mais pobres, por isso somente 3% recebem algum tipo de tratamento ou reabilitação, profissional. Afora os que têm incapacitações mais leves, que são consideradas como limítrofes, e confundem-se com a normalidade. Os incapacitados e os deficientes, mais graves, não conseguem trabalho, ficam descriminados no ambiente familiar e estão entre os mais pobres e marginalizados cidadãos do mundo, tornando-se mendigos e pedintes nas ruas para sobreviverem. A UNICEF estima que metade das crianças de rua tem alguma deficiência.

Dentro das famílias, as meninas com deficiência são 2 a 3 vezes mais sujeitas a agressões físicas ou sexuais do que as irmãs não deficientes. Como a civilização do século 21, nos países mais ricos, tratam os seus deficientes? Se depender do clichê hollywoodiano, tratam muito bem, glamorizando autistas, pessoas com dificuldade de ouvir, enxergar, andar, etc. Mas é evidente, que a grande maioria tem dificuldades de lidar com o problema.

As populações mais primitivas, como os índios norte-americanos, têm considerações mais adequadas para com seus incapacitados, do que a maioria dos chamados países civilizados. Os índios norte-americanos existentes em 339 tribos, espalhados por todo os Estados Unidos constituem-se em somente 2 milhões de pessoas (0,9% da população americana). Em 1990, foram feitas entrevistas com uma amostra representativa de integrantes de várias dessas tribos para saber o que eles achavam das pessoas deficientes e como são tratados nessa comunidade. As respostas foram as seguintes: 29% viam os deficientes como a si mesmo, portanto como pessoas normais; 29% dos incapacitados eram vistos como pessoas diferentes, precisavam ser cuidados pela comunidade; 10% dos entrevistados disseram que sentem piedade ou simpatia, pelos deficientes, mas 28% dos mais religiosos, consideravam que essa incapacitação era um castigo de algum antepassado; e 4% responderam que não tinham muito respeito e nem consideração por essas pessoas. Na sociedade dos índios que vivem em comunidades sem pressões sociais e econômicas, os incapacitados têm o que comer, onde dormir e são integrados em trabalhos adequados. Como disse um índio Navajo "ele (o deficiente) está conosco mesmo que não tenha o seu corpo inteiro".

As inúmeras deficiências e a incapacitações de uma pessoa tem diferenças importantes entre si, que foram mudando o comportamento dos profissionais e dos governos durante a evolução da medicina.

Ao menos 10% das crianças, do nascimento até 18 anos, têm uma doença crônica que leva a uma deficiência do tipo reumática ou por acidente que resulta numa incapacitação, ao trabalho e nas atividades do dia a dia. Até 1960, essas crianças eram tratadas com boa vontade e fundos arrecadados por instituições beneficentes, mas aonde eram feitos poucos programas reabilitadores para integrá-las com a sociedade. A partir dessa data houve uma alteração nos cuidados dessas pessoas, que começaram a se desenvolver entre 1970-80, devido a uma série de leis aprovadas pelo Congresso Americano. Até 1960, a criança era deixada na Instituição, depois de 1980 a criança passou a ser tratada em casa pela família, com os recursos dados pelos Planos de Saúde, fato que não ocorre no Brasil.

A incapacitação não é só de pessoas com problemas físicos (cegos, surdos, mudos) e mentais (e vícios), mas também portadores de doenças crônicas do tipo reumatismo, com suas deformidades e dores e dos acidentados (paraplégicos, amputados, etc.).

As pessoas portadoras da síndrome de Gilles de la Tourette foram descritas pela primeira vez em 1885 apresentavam tiques nervosos crônicos com movimentos repetitivos de mãos, do corpo e repetição de palavras.

Os tiques nervosos são movimentos involuntários, rápidos, recorrentes e não são rítmicos, pois envolvem grupos musculares limitados no corpo ou produção de sons (às vezes finais de palavras ou sons ininteligíveis) porque atingem os músculos da glote. Os neurologistas e pediatras, sabem que de 5% a 10% das crianças podem ter esses tiques, por diversas razões, que são transitórios, com remissão espontânea, sem nenhuma medicação e sem nenhuma explicação.

Nos casos dessa síndrome os sintomas, no adulto podem desaparecer por períodos curtos de tempo, e serem exacerbados pelo estresse e desaparecer durante o sono.

Ataca três vezes mais os homens do que as mulheres e mais vezes as crianças, jovens adultos que tiveram transtornos de hiperatividade por déficit de atenção e transtorno obsessivo - compulsivo. Geralmente os pais dessas pessoas têm ou tiveram esses transtornos. Hoje já se sabe que certa região do cérebro fica alterada, por ação de substâncias neurotransmissores chamados de dopamina, serotonina e noradrenalina e que os medicamentos fazem pouco efeito. Marcelo Barbão escreveu no Digestivo Cultural, em 25/7/2002, o artigo "Tiques nervosos na ponta da língua" sobre o livro de Jonathan Lethem, que fala um detetive, portador de síndrome de Gilles de la Tourette.

O iatista Lars Grael, em setembro de 1998, se preparava para os Jogos de Sydney, quando sofreu um acidente, em Vitória (Espírito Santo). Nessa ocasião, um barco atingiu seu veleiro, derrubando-o no mar e decepando sua perna direita. Ser vítima de um acidente e ficar entre a vida e a morte é, sem dúvida, uma experiência avassaladora. O que poderia ter significado o fim da carreira de um grande esportista representou, na verdade, uma mudança, apresentada no livro "A Saga de um campeão", (Editora Gente, 2001, 203 págs.). A obra mostra a trajetória de Lars, relembrando todas as conquistas esportivas anteriores, incluindo dois bronzes olímpicos: em Seul/88, e em Atlanta/96 assim com a recuperação do emocional e física do acidente, até se tornar secretário nacional de esportes, cargo que ocupa atualmente no governo federal, no Ministério de Esporte e Turismo. Lars Grael além de não abandonar o iatismo, passou a ter outro tipo de preocupação no esporte após o acidente. Um campeão no seu esporte, de família abonada, sadio, subitamente passa a ser um deficiente, pois sofreu uma amputação femural, assim chamada pois o coto da perna que sobrou, está a cima do joelho. Quando a amputação é acima do joelho, é mais grave e mais difícil a recuperação.

Ficou internado quase um mês, depois durante três meses, precisou tomar remédios muito fortes para não sentir dor, nesses casos associados aos problemas emocionais. Depois, passou a usar a prótese (uma perna mecânica), muito sofisticada, pois é uma prótese computadorizada, a mais moderna que existe atualmente, fabricada sob medida para o campeão. Como ficaria nessa situação, um acidentado do SUS?

Não há estatísticas sobre o número de amputados no Brasil. Se nos EUA há 30 amputados para cada 100 mil pessoas, esse número no Brasil deve ser maior, pois o trânsito aqui é pior. ''Não é muito fácil, o processo de aprendizado que é lento'', afirmou Lars, no livro que é um modelo de motivação para outras vítimas. ''Espero estar ajudando outros, com esse depoimento. Vergonha, por exemplo, é uma coisa que não posso e nem quero ter. O pior preconceito é o pessoal. Nós temos que ter consciência que dá para ter uma vida normal'', afirma o iatista.

Ele critica os planos de saúde do Brasil, que não custeiam a reabilitação de amputados, e sugere que o governo se preocupe mais com próteses de qualidade para que amputados voltem a produzir e não se tornem pessoas marginalizadas na sociedade.

''O conceito de deficiente físico tem que mudar. Ele pode se tornar um eficiente físico'', diz. Ele esteve na Olimpíada de Sydney (2000) como coordenador técnico, da equipe brasileira.

O site Deficiente Cidadão, escrito pelos próprios deficientes, traz uma série de livros em português que estimulam as vítimas a vencer suas dificuldades e fazer reivindicações em relação aos suas incapacidades.

Outro exemplo de vida de incapacitado é de Rafael Carlos que tem 15 anos, 1,10 m de altura e há pouco tempo descobriu ser portador de uma doença rara, Síndrome de Laron (uma deficiência hormonal que afeta o crescimento). Com sua descoberta escreveu o livro "Ser deficiente não é defeito" (Editora Nobel, 2000, 96 págs.). A partir daí, Rafael fez muitos amigos, mais do que imaginava. Conseguiu ser escolhido para participar de um grupo de pesquisa científica da Carolina do Norte (EUA) e vem, pouco a pouco, conseguindo vencer algumas etapas do tratamento cuja duração está prevista para dez anos. A cada seis meses, ele precisa ir aos Estados Unidos para reavaliação. O autor apesar das limitações tem um coração cheio de fé, alegria e confiança na vida, em si mesmo e nos seus semelhantes.

O livro "Anjos de Barro" (Editora EMW, 1980, 190 págs.) do repórter do jornal o Estado de S.Paulo, José Maria Mayrink, reúne depoimentos de pais, filhos de deficientes além de pessoas portadoras de várias incapacidades e dos especialistas que fazem o diagnóstico e o tratamento dessas criaturas frágeis. Ele mostra o lado pessoal da incapacidade, limitante para o indivíduo, portador do problema, do que representa ser uma pessoa especial, dentro da sociedade em que vive, que por sua vez não aceita ou não entende a deficiência, não colaborando para minimizá-la.

"Neste livro os cegos vêem, os mudos falam e os surdos ouvem", escreveu Henfil num prefácio que se transformou em mais um capítulo o depoimento de um hemofílico falando de seus problemas e da luta que é enfrentá-los.

A vida dessas pessoas que com certeza daria um filme, mostrando a pequena quantidade desses deficientes que tem um final feliz, comparada com a enorme multidão, dos que sem nenhum amparo carregam, com distúrbios emocionais, com baixa auto-estima, e com prováveis dificuldades econômica para si e para a sua família a sua incapacidade, que tem vergonha de ostentar.

José Knoplich
São Paulo, 26/9/2002

 

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