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Quinta-feira, 3/10/2002
O Agressor, de Rosário Fusco
Ricardo de Mattos

O objecto da coluna de hoje é a obra O Agressor, de Rosário Fusco.

O escritor Rosário Fusco nasceu em 1.910 na cidade de Cataguases, Estado de Minas Gerais. Tinha doze anos de idade quando ocorreu a semana modernista paulista de 1.922, mas poucos anos mais tarde, junto com outros quatro rapazes, foi responsável pela versão mineira, realmente local, do evento. Este mesmo grupo também editou a famosa revista literária Verde, hoje alvo de cobiça de estudiosos e bibliófilos, dada sua qualidade. Há menções a este periódico no volume Uma Vida Entre Livros, de José Mindlin, cuja propaganda encontrava-se recentemente aqui mesmo, no Digestivo Cultural. Mesmo superficial, o livro do Sr. Mindlin é de excelente leitura e, para quem gosta do assunto, típica obra que nos faz desatender ao tempo.

Em 1.930, Fusco muda-se para o Rio de Janeiro, onde dedica-se à crítica literária. Na década de quarenta, a segunda geração modernista assume seu lugar na literatura nacional, saindo do anterior realismo social, e dirigindo-se à investigação formal, de cunho psicológico. Neste ambiente literário lança sua obra principal, O Agressor, com nítida influência de Dostoievski e Kafka. Com esta obra, o escritor de Cataguases posiciona-se ao lado de Murilo Rubião, Clarice Lispector e Graciliano Ramos (de Angústia). Ao citado grupo de autores e obras, creio que devemos acrescentar Noite, de Érico Veríssimo, escrita na década seguinte.

O Agressor não é a única obra de Fusco, deixando além da poesia – começou em 1.928 na obra colectiva Poemas Cronológicos -, crítica, ensaios, teatro, o romance Dia do Juízo, de 1.961. Deixou também os inéditos Vacachuvamor, ASA – Associação dos Solitários Anónimos, Um Jaburu Na Torre Eiffel e Erótica Menor – poesia.

Fusco pode estar esquecido hoje, mas foi reconhecido no mundo literário da época. Quando esteve no Brasil, Orson Welles cogitou a filmagem d’O Agressor, não levando adiante o plano. O sucesso literário que teve não reflectiu em sua vida pessoal: casou-se sete vezes com a mesma mulher e encerrou sua jornada no ano de 1.977, entregue à bebida – sem fazer tipo com isso -, na cidade onde nasceu.

Temos aqui um livro denso em suas 151 páginas de texto, com uma linguagem enxuta, clara e formal. Não há experimentos linguísticos aparentes. Lendo-se com atenção, percebe-se seu esquema circular, pois os factos mencionados nas últimas páginas do último capítulo levam directamente àqueles das primeiras páginas do primeiro capítulo. Por isso, não é correcto falar em interrupção abrupta do romance. Todos os factos também estão alternadamente ligados, formando um todo coeso. Assim, temos os acontecimentos A, B, C e D. C traz a resposta aos problemas apresentados em A, verificando-se a mesma relação entre B e D. A obra não aceita uma leitura apressada, pois a intenção percebida de Fusco era demonstrar a lenta evolução da patologia psíquica do personagem principal. Ainda que leve esta patologia aos extremos, o escritor parece querer mostrar a plausibilidade do narrado, achemos aquilo um absurdo ou não. Uma comparação bem superficial: deixamos Kafka sabendo que nunca acordaremos pela manhã transformados em barata – assim espero, ao menos. Não encerramos a leitura d’O Agressor, porém, com tanta certeza em não encontrar alguém daquele jeito pela frente. Chamo o testemunho de um caso pessoal. Certa vez cheguei ao escritório e enquanto esperava o computador ligar, um homem entra, coloca sua pastinha encardida sobre o balcão, e mal cumprimentando, começa sua estória. Disse ter consultado "muitos advogados, investigadores e delegados", e todos teriam concordado com ele em certo caso. Mostrando-me uma foto, perguntou-me se eu não via nela um atentado ao pudor. Olhando o cromo, vi apenas uma moça com uma mão sobre o ombro de uma senhora. Ocorre que, seja por relaxamento muscular, seja por perspectiva, o indicador da moça aproximou-se em demasia do polegar, quase fechando o círculo. Expliquei-lhe isso, mostrando um exemplo com minha própria mão. Confirmando se realmente uma causa penal não teria futuro, despediu-se com um sorriso de desapontado cinismo. Eu soube de sua descrença, como soube que não seria o último a ser procurado por ele. Ele queria perseguir a moça. Aqui Fusco aproxima-se mais de Dostoievski. Fique bem claro que o autor nacional não é nenhum mero repetidor de estilo dos autores estrangeiros. Pode ser associado a eles, mas tem voz própria.

O personagem principal do livro é David (escrito conforme a grafia da época. Lê-se “Daví” mesmo, nada de “Deividi”), contador de uma decadente chapelaria do Rio de Janeiro da década de quarenta, cujo maior movimento limitava-se ao carnaval. Esta é uma presunção que se confirmada, reforçaria o carácter realista do livro. Fusco escrevia para as pessoas da sua época mostrando a possibilidade de ali mesmo no meio delas aparecer uma figura como a do personagem. David é marcado por sua personalidade psicopática, e sem querer ir muito adiante onde não fui chamado, pode ser classificado como psicopata anancástico, classificação daquele sujeito inseguro, ao qual um estímulo mínimo pode desencadear um comportamento fóbico insuportável. Encaminhei-me por aqui, pois isso fica bem evidente no livro.

O mal de David é agravado a cada capítulo. Quando todas as situações preocupantes são esclarecidas, ele não está mais em condições de aceitar a razoabilidade de qualquer argumento, seja seu, seja alheio. Termina o livro esmurrando a proprietária da pensão onde mora, justamente a personagem que não lhe causou dano algum. Esmurrou-a, mas poderia tê-la assassinado, estuprado, ou mesmo voltado sua violência contra si, suicidando-se. Fusco deixou seu personagem de tal forma desajustado, de tal forma transtornado, que todo acto pode ser esperado.

Há quem só almeje um pouco de amor. Outro busca a fama, e aquele quer o reconhecimento profissional. No ser vítima de um assassinato parece estar o ideal de David. Por conta de sua patologia, item aliado a sua insignificância social, o personagem parece até frustrar-se ao desconfiar de que ninguém quer matá-lo: “Alguém precisa querer dar cabo de mim”, suspeita-se ser o raciocínio a entupir-lhe o cérebro. Detalhes insignificantes e desculpáveis vão ganhando corpo, acrescendo-se a outros, gerando uma aflição insuportável.

E realmente banal o que desencadeou a loucura do personagem. Seu local de trabalho na loja era vizinho ao depósito de mercadorias, separado por uma parede de madeira. Certo dia, começa a ouvir ruídos no depósito, e em vez de descobrir logo a causa, fica especulando. Muito estupidamente, pergunta: “Como é isto? É gato ou é gente?” e ouve a resposta “É gato ...”. Só isso. Uma chacota deu origem a investigações minuciosas realizadas por David, que recebia, entendia e concluía a seu jeito cada descoberta. Vê coisas inexistentes, ligações descabidas, desconfia de suas próprias razões, intromete-se em assuntos que lhe não dizem respeito e até prejudica terceiros inocentes, ao denunciar seu patrão na delegacia e pedir á polícia protecção contra ele. Depois disso, tem-se todo o desenrolar da doença. É o leitor quem vai descobrindo as birutices de David, porque o autor dificilmente ajuda. É uma obra realmente digna de leitura.

Ricardo de Mattos
Taubaté, 3/10/2002

 

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