busca | avançada
105 mil/dia
2,0 milhão/mês
Sexta-feira, 4/10/2002
A internet e os blogs
Julio Daio Borges

Depois de muita rasgação de seda em cima dos blogs e dos "blogueiros", está na hora de alguém atirar algumas pedras (ainda que seja dentro da internet, onde os telhados costumam ser de vidro blindex). A "comunidade blogueira" tem se mostrado refratária às críticas e cultiva o péssimo hábito de responder com virulência e intolerância, mas é quase um dever cívico peitar o senso comum. Apesar da turba; apesar da grita. Ainda vai chegar o sujeito que, do cume de uma montanha, proclamará em alto e bom som: "Os blogs não estão com nada! 'Blogueiros', go home!". Enquanto isso não ocorre, fica adiado o acontecimento de particular vibração; resta preparar o terreno - e, pacientemente, esperar.

Primeira lição: o que vem a ser um blog? As definições estão aí para quem quiser pesquisar e não existe um único maldito artigo a respeito que não abra o primeiro parágrafo evocando os web logs ou os "diários virtuais". Web (que, em inglês, quer dizer "teia") se refere à internet; e log (que, traduzindo, significa "registro") pode ser entendido como uma "marcação" ou como um "cartão de ponto". Resultado para web logs: "anotações na WWW". (Graças a uma corruptela providencial, passou-se de "web logs" para simplesmente "blogs"). Já os "diários" são aquilo mesmo; e "virtuais" apenas porque escritos dentro do universo cibernético [abuso de linguagem? Que venha Pierre Lévy].

Agora, alguém precisa explicar como se pode escrever um diário que seja acessível a todo mundo. É, no mínimo, curioso. [Ah, então não é um diário de verdade...] Não, claro que não, com mamãe, papai e todos os irmãos pequenos olhando... [Ah, então o "blogueiro", na verdade, quer atenção...] "Aparecer" seria o termo mais exato, mas - para suavizar um pouco a coisa - digamos que, na sociedade de espetáculo, o "blogueiro" nada mais é que um performer. Assim como Nietzsche acusou (com Wagner) a ascensão do ator na música, não seria errado apontar o blog como o avesso do reality show: muita gente querendo aparecer, pouca gente querendo olhar... [Ah, você está simplificando...] Pode ser.

Mas pior do que entretenimento para as massas, é levar a brincadeira a sério. E muitos estão levando; ou se levando (o que é ainda pior). Erro grave: fazer do blog um meio de comunicação. Uma analogia para ilustrar: num dia qualquer, todo mundo acorda, pega seu banquinho e senta-se na porta de casa para falar sobre qualquer coisa; de repente, uma pessoa passando pela rua, pára para escutar; se for interessante, ela faz um comentário ou leva o caso adiante; se for muito interessante, os amigos de tal pessoa, escutando o caso de novo, levam-no ainda mais adiante; se for muito interessante mesmo, chega até o rádio, o jornal, a televisão. Tal fenômeno, contudo, não faz do banquinho um "meio de comunicação".

A analogia está furada, vão dizer. [No blog, a mensagem não se transmite de pessoa a pessoa; ela é irradiada para dezenas, centenas, milhares de indivíduos ao mesmo tempo.] Será? Pode até ser. Mas, tirando os "blogs da moda", a "lista do dez mais" e acontecimentos onde a demanda por informação atinge picos assustadores (como o "11 de setembro"), quem é que já viu seu contador registrar as tais "centenas" e os tais "milhares"? Quem, na calada da noite, não se pegou perguntando "será que alguém realmente se importa?", passou dias sem atualizar o bendito do blog, e percebeu que - realmente - ninguém se importava? [Outro furo da sua teoria: se o blog fosse assim desse jeito, por que então os mais importantes jornais dos Estados Unidos e da Europa estariam aderindo à novidade?] Simples: quem vai querer ler o blog do Zezinho, quando pode consultar as opiniões dos mesmos jornalistas renomados aos quais já está acostumado? Os blogs dos veículos estabelecidos funcionam apenas como ferramenta, como adendo, nunca substituindo os periódicos de fato.

A internet, sim, pode ser considerada uma mídia (ainda que haja controvérsias). Nem por isso, no entanto, qualquer site ou portal pode se afirmar como meio de comunicação; e, muito menos, qualquer blog. Os "blogueiros" não atentam para o fato de que o conceito de "pilha" (um dos mais antigos da computação) inviabiliza qualquer ação mais substanciosa, qualquer discurso mais articulado. A maioria dos blogs funciona como um amontoado da produção de determinado autor, onde os gêneros se misturam e a leitura requer uma paciência extra do visitante (tão acostumado ao primado do user-friendly). A pesquisa, nesse ambiente, revela-se improvável, pois nem o próprio realizador sabe hierarquizar suas sinapses e seus espasmos de criatividade. Quando o mesmo artista não se apega à organização e o aperfeiçoamento de sua arte, como esperar que ela floresça e cresça frondosa?

A vastidão dos blogs acaba se atendo à superficialidade, ao chamariz, ao dito "furo de reportagem". [Ah, mas e aquele caso do blog que furou a impressa toda, etc. e tal?]. Furou como furaria alguém com um cartaz no Viaduto do Chá ou na Praça da Sé. [Ah, mas e a agilidade da Grande Rede? E o reconhecimento por parte dos grandes profissionais tarimbados?] A suposta agilidade talvez não deva ser atribuída apenas à Grande Rede, mas também aos velhos meios de comunicação (telex, telefone, fax). Quanto aos tais "profissionais", o melhor seria chamá-los de deslumbrados: sempre procurando abocanhar um novo público, pródigos em croniquetas bajulatórias e programas moderninhos de televisão. [Ah, mas com esse ceticismo todo não dá para conversar; os blogs são a verdadeira democracia em curso, o milagre da autopublicação, a impossibilidade de qualquer censura!]

Claro, para pequenas comunidades pode funcionar; para fins terapêuticos, também pode funcionar; para exercícios de escrita, práticas amadoras de jornalismo, certamente que pode funcionar (!). Mas que nunca se esqueça dos limites do blog, do alcance de um pequeno site, das deficiências de um grande portal. A mania científica condicionou o homem a se sentir diante da Pedra Filosofal (ou do Elixir da Eterna Juventude), por mais mísero que seja o avanço, por mais imatura que seja ainda a tecnologia. José Saramago disse uma coisa bastante arguta em Janela da Alma: "Para que vou querer 500 canais de tevê a cabo? Por acaso eu consigo ler 500 diários, se vier a assiná-los?". Ainda assim, tem gente achando que vai ler 500 blogs e apostando pesado na expansão descontrolada. (Quando se fareja, porém, os caciques da blogagem, sente-se - não se sabe por quê - o familiar cheio das Capitanias Hereditárias...)

Julio Daio Borges
São Paulo, 4/10/2002

 

busca | avançada
105 mil/dia
2,0 milhão/mês