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Terça-feira, 8/10/2002
A Esfinge do Rock
Martim Vasques da Cunha

"People see me all the time and they just can't remember how to act
Their minds are filled with big ideas, images and distorted facts".
Bob Dylan, "Idiot Wind"

Os leitores não devem se enganar, quando lerem na contracapa de "Dylan - A Biografia", publicada pela Editora Conrad (R$ 50,00), que Bob Dylan foi um "herói do rock e um herói da esquerda", como se fosse um Che Guevara que empunhava um violão e uma gaita e cuspia palavras de revolução. Se isso foi um toque de marketing, saibam que comprarão gato por lebre. Em primeiro lugar, porque Dylan nunca quis ser um herói da esquerda - mais especificamente, da contracultura dos anos 60 que quase o excomungou no show do Royal Albert Hall, ao trocar a música folk pelo rock-nŽ-roll. E em segundo lugar, Dylan não pode ser catalogado em uma gavetinha ideológica, pois sua vida e seu trabalho ultrapassam quaisquer mesquinharias políticas.

Nem mesmo o autor do livro que está sendo publicado pensa o mesmo, o que prova que a divulgação da Conrad não foi muito feliz. "Dylan - A Biografia" é, na verdade, a tradução de "Down the Highway - The Life of Bob Dylan", biografia escrita pelo jornalista inglês Howard Sounes, o responsável pela única biografia respeitosa sobre Charles Bukowski, pois não se preocupava com as minúcias de seus delírios alcoólicos e sexuais. Com Dylan, Sounes tenta manter o tom de respeito, mas claro que, por mais subversivos que os dois se pareçam, fazer uma biografia de Bob Dylan é algo completamente diferente de fazer uma de Charles Bukowski. E por um simples motivo: Dylan é inclassificável.

Nascido em 1941, na cidade de Hibbing, Minnesota, Robert Allan Zimmermann só trocou o nome para Bob Dylan em homenagem ao um tio chamado Dillon e não por causa do poeta Dylan Thomas, como muitos gostam de espalhar aos quatro ventos. A mudança tinha um propósito: o jovem judeu queria se tornar um cantor de blues. Seu grande ídolo era Woody Guthrie, um sujeito que andava por toda a América com sua guitarra ímpar, com letras talhadas na madeira e que diziam: "Esta é uma máquina de matar fascistas". Foi com ele que Dylan aprendeu os truques do blues e do folk, mas com uma influência do Antigo Testamento, foi capaz de compor o primeiro hino da década de 60, "BlowinŽin the Wind".

A canção, que fazia parte do segundo álbum de Dylan ("The FreewheelinŽ Bob Dylan", lançado em 1964), era apenas a semente de uma obra que ficaria marcada pela voz anasalada, pela gaita afiada em sentimentos e por uma consistência poética que não ficaria a dever ao um Yeats, um Eliot ou um Blake. No entanto, muitos de seus primeiros fãs o colocariam na gavetinha da política da esquerda, chamando-o de "pacifista" e "revolucionário". Em uma entrevista dada à revista Rolling Stone, Dylan disse que não era nada disso, que sua música nunca teve uma preocupação ideológica e que sua intenção era fazer o que seu instinto mandava. Além do mais, ele nunca teve jeito para ser um "pacifista": quem viu o documentário de D.A. Pennenbaker, "DonŽt Look Back" (1965), que retrata os últimos momentos da fase folk de Dylan, conhece a sua intensidade maníaca, capaz de humilhar um jornalista da Time Magazine sem misericórdia ao perguntar - "Você acha que o seu trabalho é importante? Você e o seu trabalho não valem nada, porque você vai morrer e o mundo não vai sentir a sua falta".

Essa atitude de confronto seria comprovada no show do Royal Albert Hall, em que "o herói da contracultura" foi vaiado por hippies de toda a espécie por ter "eletrificado" suas canções folk. Ao escutar um infeliz gritar "Judas!", Dylan não hesitou em gritar para a banda The Hawks (futura The Band), "PLAY FUCKING LOUD!!!!!", e começar uma versão ensurdecedora da melhor canção de vingança já feita: "Like a Rolling Stone". Tudo bem, o leitor já deve ouvido esta canção milhares de vezes, mas nada se compara a ouvir Dylan enfurecido, alongando com ódio o refrão - "How does feeeeeeeellll????" (Como você se sente?).

É claro que ele não se sentia muito bem. Aliás, e esta é uma das vantagens do livro de Sounes, pois mostra que a carreira de Dylan sempre foi inquieta. Uma hora era o cantor folk; outra hora era o Elvis lisérgico de "Highway 61 Revisited"; ou então o poeta melancólico de "Sad-Eyed Lady Of The Lowlands", milagrosa canção de amor que escreveu em homenagem a sua esposa, Sara Lowndes. Dylan nunca parou no tempo: seu maior dom foi estar à frente de todo o mundo e respeitar a regra número um do artista - sempre ser a fiel a si mesmo, sem se importar com o público porque, afinal de contas, é ele que tem de se adaptar ao artista e nunca o contrário.

Esta intensidade tinha que parar alguma hora. Em 1967, depois de quase morrer em um acidente de motocicleta, Dylan ficou recluso por um ano e meio e só voltou com uma obra-prima: o bíblico "John Wesley Harding" (1968), que inicia uma nova fase na sua vida, que iria se solidificar com "Slow Train Coming" - a busca consciente por uma vida mais religiosa. Contudo, antes disso, Dylan teve de passar pela doçura de "Nashville Skyline", pela tristeza e resignação de "Blood On The Tracks" (sua magnum opus, com canções fundamentais, como "Tangled Up In Blue" e "Idiot Wind"), até chegar ao cristianismo de "Slow Train Coming".

Este período da vida de Dylan é tratado com sobriedade por Sounes na biografia. Mesmo com 250 entrevistas, o jornalista não conseguiu saber a causa da conversão e, depois, da sua volta às raízes judaicas - celebrada indiretamente no álbum "Infidels" (1981). Na verdade, isto já estava previsto desde os tempos de "Blonde On Blonde", em que Dylan via o mundo como uma alucinação que só tinha sentido quando aparecia a Sad-Eyed Lady Of The Lowlands, uma clara referência à Virgem Maria. Mas a separação de Dylan com Sara Lowndes, mãe de seus nove filhos, inclusive Jakob, o líder da banda Wallflowers, o levou a uma crise existencial que fica patente tanto em "Blood On The Tracks", como no álbum "Desire", com a canção "Sara". Neste sentido, a sua fase cristã foi importante para que não caísse no abismo, como o próprio afirmou em uma entrevista ao jornalista Bill Flanagan.

A conversão religiosa deixou suas marcas no mistério em torno de Dylan. Mas não o transformou em sua essência: ele continua sendo uma esfinge, evitando dar entrevistas e, inclusive, mantendo em segredo sua vida pessoal, como prova Howard Sounes, ao descobrir que Dylan casou pela segunda vez, com a cantora Carolyn Dennis, com quem teve uma filha e logo depois se divorciou. Sounes termina o seu livro na época em que Dylan acabara de lançar "Time Out Of Mind" (1997), o álbum em que se reinventou como o spoudaios do rock-nŽ-roll. Para quem não sabe, spoudaios significa "o homem maduro, aquele que viveu todas as potencialidades de sua vida", conforme diz Aristóteles na sua "Ética a Nicômaco". Não há como discordar dessa afirmação, ainda mais depois do lançamento de seu último disco, o brilhante "Love and Theft", justamente no dia 11 de setembro de 2001 - período que, infelizmente, Sounes não aborda no seu trabalho. Sua biografia, mesmo com seus erros de divulgação, chega em boa hora para provar que, às vezes, uma vida não pode ser aprisionada em clichês políticos. Principalmente, se for uma vida como a de Bob Dylan.

Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado no Correio Popular, de Campinas.

Para ir além





Martim Vasques da Cunha
Campinas, 8/10/2002

 

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