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Quinta-feira, 10/10/2002
Reflexões na fila
Adriana Baggio

Domingo de eleições. A idéia era levantar relativamente cedo, cumprir com a obrigação e depois ir à praia, programa muito mais interessante para o fim de semana. Mas a farra do sábado à noite cobrou seu preço e os planos tiveram que ser alterados. O fígado só deixou o resto do corpo funcionar lá pelas 3 horas da tarde. Tive a ingênua esperança de que todo mundo votaria logo cedo para também ir à praia, e que naquela altura as sessões já estariam vazias. Que ilusão.

Meus problemas com as eleições 2002 começaram em maio. Deixei para os últimos dias a transferência do meu título para a Paraíba. O pessoal dos cartórios eleitorais também deixou para os últimos dias a idéia de fazer greve. Justamente na tarde em que o diabo parecia ter transferido a sede do governo para João Pessoa (metáfora exagerada para calor infernal), encarei o centro da cidade de carro, sem ar condicionado, só para saber que não ia conseguir votar nestas eleições. Para não perder a viagem e nem o costume, rodei a baiana com os grevistas antes de voltar para o trabalho.

O resultado de toda essa história é que, no domingo, de ressaca, tive que ficar 2 horas na fila para poder justificar o voto. Essa coisa de fila é muito engraçada. Você acaba se relacionando com pessoas que, em outras circunstâncias, nem olharia duas vezes. Mas a fila, assim como os engarrafamentos nas estradas, faz com que todos sejam solidários, participem do mesmo infortúnio. Outra característica das filas é o telefone-sem-fio. A informação começa lá na frente, vai percorrendo toda a fila até chegar no fim. Às vezes chega correta, às vezes não. Na fila de domingo o grande boato foi a multa.

A maior parte daquelas pessoas ia justificar o voto. É o cúmulo que em uma cidade turística, na região onde se concentram os turistas e as pessoas que se mudaram recentemente para a cidade - ou seja, talvez o maior contingente de votos justificáveis - a Justiça Eleitoral tenha reservado somente um lugar para a justificativa. A informação que começou a correr nessa fila é que a multa para quem não votasse ou não justificasse era de uns 3 reais. Isso mesmo, míseros 3 reais. Por que, então, ficar 2 horas na fila? Muita gente pensou assim e desistiu.

A diferença entre ficar na fila para votar e para justificar é que, no primeiro caso, existe uma motivação: a participação em um processo decisivo. Mas para quem já não vai poder interferir nisso, qual a motivação? Nenhuma, apenas a de cumprir um procedimento burocrático para não sofrer penalização. É por isso que o povo da justificativa estava indócil na fila, isto é, aqueles que ficaram nela.

Eu fiquei porque não podia ir embora, teria que esperar de qualquer maneira. Já diz a sabedoria popular que, se for inevitável, relaxe e aproveite. A primeira fase da curtição da fila é fazer social com os conhecidos. Depois de achar seu lugar, se acalmar, vem a parte de estabelecer contato com o da frente e o de trás. Normalmente, o assunto das conversas, pelo menos no começo, gira em torno do tempo. Que bom que não está chovendo. Imagine essa fila com o sol do meio-dia. Como foi bom ter deixado para vir depois das 4 da tarde. E por aí vai. Esgotada a parte climática, vem a fase meter o pau no governo. Dentro desse assunto, o ponto principal era a falta de organização que tinha provocado aquela fila imensa. E eu nem podia destilar meu preconceito sulista. Tive que me contentar com os argumentos neutros, os mesmos usados pelos meus vizinhos de fila, que se não eram de João Pessoa, pelo menos eram nordestinos.

Depois de 1 hora o papo passou para as eleições em si. Naquela fila tive uma revelação: o motivo pelo qual as pessoas daqui são mais politizadas que as pessoas do meu antigo círculo, em Curitiba. A princípio, pensei que era uma questão de formação ideológica, de talento. Mas não é assim. Todo mundo se interessa e entende de política porque quase todo mundo depende de um político para manter seu emprego, sua qualidade de vida, seus bens materiais. O assistencialismo e a troca de favores no nordeste ainda é uma realidade, mesmo na capital, nos grandes centros. As pessoas acham normal trocar voto por benefícios. Na verdade, nada mais é do que o reflexo de um comportamento que se estende a outras situações: cada um por si, Deus por todos, e o coletivo que se lasque.

Já no fim da fila, quando o tormento parecia estar prestes a acabar, o negócio empaca. Mas pelo menos o cenário ficou mais interessante. Uma Marajó velha, caindo aos pedaços, estava estacionada na frente do colégio, em local proibido. No banco do motorista, uma figura barbuda e asquerosa. Talvez ele estivesse esperando a mulher votar. Ele via a fila dando a volta no quarteirão, e mesmo assim, tocava a buzina da lata velha de cinco em cinco minutos. Era inacreditável. Ele ficou um bom tempo buzinando. Me deu dó da mulher do cara. Além de ter que dormir todo dia com troglodita como aquele, ainda padecia da vergonha de ser chamada às buzinadas de um lugar que ela não tinha como sair mais depressa. Imaginei esse homem em casa, na mesa. Provavelmente ele senta e espera ser servido, come como um porco, reclama da comida, da vida, da mulher. Depois dá um arroto bem grande, levanta e vai para o sofá assistir televisão, enquanto ela limpa e arruma tudo.

Não vi a mulher chegar no carro. Logo chegou minha vez, e consegui justificar o porquê de não estar votando nessas eleições. Tudo muito simples e rápido. Uma fila de 2 horas para um procedimento de 10 segundos. Depois, saindo do colégio e observando a fila que ainda dava voltas no quarteirão, pensei no atraso da vida de algumas pessoas e de alguns lugares. Pensei na mulher que estava na minha frente na fila, e que não ia votar no deputado que ficou de arranjar um emprego para ela mas não arranjou; pensei na esposa no Mr. Marajó, que provavelmente preferiria 2 horas de fila a 2 minutos de cama com um marido como aquele; pensei na mulher cheia de jóias, bem vestida, unhas pintadas, que fez a minha justificativa eleitoral, e que ainda iria passar um bom tempo naquele colégio. Pensei que, apesar de tudo, ainda tenho muita sorte.

Adriana Baggio
Curitiba, 10/10/2002

 

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