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Quinta-feira, 17/10/2002
Cidade de Deus, de Paulo Lins
Ricardo de Mattos

Comecemos desmanchando o novelo. Há o livro inicial Cidade de Deus do escritor fluminense Paulo Lins, agora em reedição enxuta por ele mesmo (contudo, refiro-me sempre à primeira). De carona no sucesso do livro, surgiu o filme. Há o bairro, que serve de matéria para o livro e cenário para o filme. Alguns, indignados com o estilo de vida narrado, muitas vezes atacam a obra literária, situação esta a contaminar o filme.

O livro em si não merece qualquer tipo de ataque. Foi com extrema Competência que Paulo Lins tratou do tema escolhido. Sua intenção em descrever o bairro/favela Cidade de Deus, seus moradores, o meio criminal, a corrupção da polícia, foi plenamente alcançada. Nada ficou de fora, e temos uma obra que merece vida longa. Elaborada na forma de um romance, divide-se em três "Histórias" - a de Cabeleira, a de Bené e a de Zé Pequeno - e através delas a do bairro, durante os anos sessenta e setenta. Os jornais costumam mostrar os factos consumados, o livro mostra o "como" e o "porque" muitas vezes ocultos. Não se nota nenhum maniqueísmo, e se não fosse ficção, este seria um trabalho de antropologia. Seu par ideal - embora não seja também um romance - é Estação Carandiru, um mostrando o criminoso em seu habitat, o outro em cativeiro.

Quem estiver interessado em iniciar-se no crime pode usar Cidade de Deus como preciosa fonte de consulta. Tudo é bem explicado: como se mata, quando e quais os motivos principais. Como se rouba, de quem, qual é o melhor jeito, os contratempos a serem evitados e os esquemas a serem armados. Quais as melhores armas, de quem comprá-las, como guardá-las. Como deve ser o convívio com os malandros - fazer uma presença - , o que esperar deles, os códigos de ética e disciplina - mais eficazes que os de algumas profissões - e as penas pelo desrespeito. Qual o tratamento a ser dispensado às mulheres, e o que elas devem fazer em caso de abuso. Quando o estupro é legítimo. Como deve conduzir-se quem é preso, no tocante a não entregar os cúmplices. Procedimento para recrutamento de prosélitos.

A linguagem utilizada é incomum. Percebemos uma variação constante do coloquial, até mesmo do chulo, com o culto. Na página 23, há uma oração semelhante às antigas evocações às Musas pelos poetas - no caso Calíope, da poesia épica - solicitando "engenho e arte" na consecução do intento. Personagens falam e pensam como o fazem aqueles que os inspiraram, é o autor que não escreve como eles. Às vezes permite-se alguns ornamentos ("... para levar qualquer um que marcasse bobeira, lançar chumbo quente em crânios párvulos ..."), e o modo como faz não nos deixa a impressão de um minueto tocado por um grupo de pagode. Ao contrário, prende a atenção e alterna fases entediantes com outras de grande movimento. Estas fases entediantes, repetições constantes de acções e das actividades são propositais, soube mais tarde ao ler em uma revista um comentário sobre a reedição. O autor fez algumas mudanças no livro em decorrência do filme, trocando nomes de personagens, inclusive: Zé Pequeno foi renomeado Zé Miúdo.

Há um trecho em que a narrativa consegue ser mais cinematográfica que o filme. Nas páginas 174/175 o autor descreve o percurso feito pelo policial Cabeção nas ruas da favela, alternando frase a frase, o caminho seguido com as reflexões dele, encerrando o parágrafo com sua morte. Talvez um aceno à adaptação não correspondido pelo director. Do meio para o fim da segunda parte, também encontramos um dueto narrativo, pois dois episódios - a tomada de um ponto de tráfico e o assalto a um banco - são alternados parágrafo a parágrafo.

O filme Cidade de Deus é inócuo. Poderá vir a concorrer ao Oscar na categoria de melhor filme estrangeiro, evidentemente no-lo ganhará, passará à noite na televisão e logo será esquecido, bem como a polémica gerada com seu lançamento. Sem ler o livro, pouco se aproveita da adaptação. Quando a assisti, encontrava-me na metade do volume, e foi o suficiente para entender que episódio da narrativa foi aproveitado nesta cena ou remodelado naquela. Aqui, os criminosos falam em "tráfico de droga", "cocaína", termos dificilmente usados na obra. Se mantidas as expressões originais, o vocabulário autêntico, creio que a repercussão seria muito menor, pois nem todos entenderiam os diálogos. No bairro/favela, a "inculta e bela" jaz coberta com jornal e tem acesa ao lado uma vela. Elegeu-se Busca-pé como narrador e elo entre as partes, o que não ocorre no livro (Busca-pé tem algo de autobiográfico?).

A violência narrada no filme é em muito inferior à descrita no livro. Tiroteio não é algo que chame tanto a atenção, e procurando direito encontrar-se-á filme nacional tão violento quanto este, ou mais. O ponto alto do vandalismo mostrado no filme costuma ser identificado com os tiros nos pés de duas crianças e a morte final de uma delas à escolha de um iniciante que busca "ganhar a consideração dos bicho solto" (sic). O homicídio é um modo eficaz de adquirir respeito naquele meio: "Buzininha já havia matado, todos já haviam matado só ele estava em falta. Teria moral de sujeito ruim". Pois bem, no livro encontramos uma cena avulsa na qual um homem acredita ter sido traído pela mulher. Baseia sua desconfiança no facto dela ser negra como ele e ter concebido um filho "branco". Certo do adultério decide liquidar a criança, primeiro esquartejando-a. O autor descreve detalhadamente como cada membro da criança é cortado, das dificuldades encontradas em quebrar os ossos e necessário recurso a um martelo para concretização do crime. Paulo Lins ainda preocupa-se em esclarecer que apesar de já estar sem as pernas e os braços a criança mexia-se, fazendo-nos imaginar, voluntariamente ou não, uma grande larva. Há também n'uma briga entre facções opostas, a descrição de um "endo-fuzilamento", ou seja, o cano de um fuzil é enfiado na boca de um menino e são dados oito disparos, fazendo sua cabeça desaparecer. Atenção ao detalhe do olho que é encontrado intacto na rua e parecendo ainda enxergar. Portanto, quem se chocar com a violência do filme, deve lembrar que o livro é ainda mais drástico. E a Realidade supera a ambos. Quem assiste um sem ler o outro julga tratar-se de uma apologia à violência pela violência e isso trata de um equívoco, pois necessário entender aquele ambiente. Nossos devedores são notificados, cobrados judicialmente, têm um prazo para apresentar sua defesa, etc. Naquele lugar, dever e não pagar significa morte. Sobretudo o crédito é ilícito por sua origem. Falar em "Direito", "Lei", "Autoridade do Estado" naquele meio faz com que nos sintamos como o personagem Chavel interpretado por Anthony Hopkins no filme "O Décimo Homem", baseado em livro homónimo de Grahan Greene, logo que é preso.

Ambos, mas o livro em primeiro lugar, fazem vir à tona nossa repulsa pelos personagens. São mostrados como, e sabemos que são, uma degeneração da espécie humana, seres a levar uma vida primitiva, pré-histórica. Dormem, comem, reproduzem-se, assaltam, matam e, não tendo algo a fazer no intervalo, drogam-se vertiginosamente. Sabemos que não mudarão pois assumiram voluntariamente seus papéis e sabemos que não concentram no seu mísero mundo os problemas descritos. "Ah, mas há trabalhador naquele meio!". Sim, há, quem falou o contrário? A hipocrisia somente não pode ir tão longe a ponto de negar que este mesmo trabalhador ora defendido TAMBÉM "puxa" seu baseadinho, cheira sua "carreira de brizola", e ajuda a manter o tráfico tal como ele é. Segue as determinações dos traficantes não apenas por medo, mas como bom usuário, não lhe interessando o fim da "boca". Uma mão lava a outra: ele não se intromete no tráfico e recebe protecção efectiva. Tal assertiva é bem evidente quando acompanhado o raciocínio de Zé Pequeno: "... tinha era que travar idéia de responsa com os matutos para eles trazerem bagulho bom e brizola boa na hora em que ele bem quisesse, proibir assaltos nas redondezas para não chamar a atenção da polícia e pronto". Segurança para-estatal não pela ordem, mas pela preservação de interesses ilícitos. "Polícia" e "Bandido" são meramente facções opostas, o Estado acabou naquele meio. O próprio emprego de termos policiais (enquadrar) e técnicos (inquérito) pelos bandidos mostra uma organização paralela em progresso.

Até no culto policiais e bandidos assemelham-se. Antes de cada acção, evocam o espírito protector. Não praticam uma religião, mas uma degenerescência dos cultos africanos tradicionais. Uma coisa é o Candomblé - entre as religiões de origem africana é a que primeiro costuma vir à cabeça - por assim dizer "típico". Há a crença na comunicação com o além, há o famigerado sacrifício de animais [embora isso não lhe seja exclusivo como provam os khevsurs, cristãos ortodoxos habitantes das montanhas em torno do Mar Negro, e os samaritanos, minoria judaica que pratica este ritual no monte Gerizim], porém segue-se certa "liturgia" de cantos, danças, etc. Admitindo-se a comunicação com o Além, um espírito (pombagira) que procurado dá a seguinte orientação não é signo de uma religião saudável: "Eta moça formosa! Eu já sei tudo que essa filha da terra quer saber ... É só colocar presente pra mim na encruza, que quanto mais você for com o outro ele mais acredita em você ...". A única manifestação de uma lasca de espiritualidade aconselha o adultério. A seguidora de tão nobres orientações acabou sendo enterrada viva com o amante, no quintal da casa onde morava. Paulo Lins relata imparcialmente este episódio. Quem acredita nestas coisas, deve verificar a utilidade de uma crença assim, que considero até ofensiva às religiões africanas legítimas. Um leigo presencia estas manifestações e corre o risco de generalizar. Quem não acredita, basta seguir com a leitura.

Os problemas apresentados nas obras não são limitados à região, nível escolar, raça ou nível financeiro definidos. Todas as classes - quer as principais, quer as intermediárias, como a "média-baixa" por exemplo - são envolvidas. Analfabetos entregam drogas encomendadas por prepotentes doutores e outros membros da arrogante fauna universitária. Quem se orgulha de frequentar os melhores cursos, deve reparar em torno de si e identificar os usuários entre seus pares. Aqueles que se entendem como "Elite", ou mesmo pretendem-se "Aristocratas", têm um porão doméstico cuja investigação pode revelar-se bem constrangedora. Não acho sincero falar-se em apartheid. A ascendência africana é mencionada uma única vez, no retracto do traficante "Grande": "Tinha prazer em matar branco, porque o branco tinha roubado seus antepassados da África para trabalhar de graça, o branco criou a favela e botou o negro para habitá-la, o branco criou a polícia para bater, prender e matar o negro". Sequer os referidos antepassados africanos levavam a vida como hoje seus descendentes. Aqueles caçavam, cultivavam, mantinham a comunidade, guerreavam por motivos mais palpáveis (busca de braço escravo, ampliação de domínios, resposta à afronta injusta). Se anteriormente houve discriminação, segregação, se faltou a esta gente uma oportunidade, tudo isso acaba usado como desculpa para o actual estado em que se encontra, do qual não há muita disposição de sair. Hoje, ela não quer virar "otário". A cumplicidade no uso de entorpecentes possibilitou entre negros e brancos a igualdade que a lei não conseguiu. Se estes elementos estão restritos a um lugar, a um foco, trata-se de mera conveniência. Na página 469 da primeira edição expressa-se a constatação: "Antigamente, comentavam pasmados os moradores, somente os miseráveis, compelidos por seus infortúnios, se tornavam bandidos. Agora estava tudo diferente, até os mais providos da favela, os jovens estudantes de famílias estáveis, cujos pais eram bem empregados, não bebiam, não espancavam suas esposas, não tinham nenhum comprometimento com a criminalidade, caíram no fascínio da guerra. Guerreavam, assim como Dé, por motivos banais: pipas, bola de gude, disputas de namoradas". Alcançou-se um estágio no qual não se pode falar honestamente em preconceito. Parece que toda resposta que encontramos é previamente contestada pela realidade.

Para ir além




Ricardo de Mattos
Taubaté, 17/10/2002

 

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