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Terça-feira, 29/5/2001
A língua da comida
Daniela Sandler

Jantar às seis da tarde? Era o final do verão, o sol brilhando, meu lanche ainda no estômago, e meus amigos norte-americanos iam comemorar um aniversário jantando às seis da tarde. Fora a minha surpresa, não tinha nada de anormal. As pessoas aqui nos Estados Unidos não só jantam à tarde, ainda por cima chamam "tarde" de "noite". Passou das cinco, anoiteceu - ainda que seja um longo dia de verão e o sol se ponha às nove.

Não é só na hora da janta que os americanos comem diferente, embora o império do McDonald's nos faça crer que a gente é igual. Não é. Começa no café: café não, chafé. Pense no café mais fraco que você já bebeu. Acrescente ainda mais água. O resultado é o que eles chamam de café. Mas aí eles enchem um copo gigante e acabam bebendo tanta ou mais cafeína quanto a gente no nosso cafezinho - com a diferença de que colocam litros de leite, creme e açúcar. Claro, para compensar a sem-gracice da bebida original…

Almoço aqui, fazendo jus ao som da palavra inglesa - lunch -, é isso mesmo, apenas um lanche. Um sanduíche, uma salada ou uma caneca de sopa - comida que se engole depressa, em geral fazendo outra coisa. Refeição completa, quente, com vários pratos postos na mesa, só no jantar (aquele das seis da tarde). Quanto ao que eles chamam de lanche (snack), é o que se come lá pelas nove ou dez da noite, quando bate a fome horas depois do jantar.

Falando em jantar, muita gente aqui cresce bebendo leite junto com o bife e o purê de batatas. Em vez de suco, água ou coca, copos de leite gelado para enxaguar o macaroni and cheese (macarrão curtinho com molho de queijo gratinado. Molinho, cremoso, com o gosto fácil do queijo, é uma das "comidas d'alma" dos EUA).

Não me entendam errado - há gourmets nos Estados Unidos. Não vou nem falar de São Francisco, Chicago ou Nova York, metrópoles cheias de restaurantes estrelados e chefes-estrela. Falo, por exemplo, de haver cinco ou seis revistas de culinária gourmet - tipo as nossas duas (Gula e Sabor), só que com o dobro de páginas e de mercado… Falo dos chefes-celebridade, como Emeril Lagasse, que tem show na TV e linha de panelas com seu nome; da indústria de turismo para gourmands; da moda dos farmers markets (nada mais que a nossa feira-livre, que aqui é chique, já que os hipermercados tinham quase enterrado essa forma de comércio). Alain Ducasse, o chefe francês que cobra US$ 200 por um almoço em seu restaurante em Nova York, já inclui queijos norte-americanos em seu menu, tão boa é sua qualidade. Fora a gama alaranjada de cheddars envelhecidos, queijo típico do país, alguns artesãos produzem uma variedade enorme de queijos de cabra que não ficam nada a dever aos franceses - com impressionantes cascas de mofo coloridas, interiores de todas as consistências, e até um queijo em que a massa firme é separada da casca por uma camada de queijo quase líquido.

Eu sempre tenho a impressão de que tendências culturais muito intensas são como uma reação a tendências opostas, tão intensas quanto, na mesma sociedade. Os americanos podem estar bailando com seus chinois e mandolins, mas quando vou ao cineplex eu vejo mesmo é os baldes de pipoca amarela e os jarros de coca-cola - e a fileira de cadeiras especiais, duplas, para acomodar as pessoas obesas. Não canso de ouvir o espanto de amigos que estiveram no país: como as pessoas são gordas! Como tem gordo!

Tem mesmo muito gordo. E é um tipo de gordo diferente: muuuito gordo, de uma gordura flácida, flutuante (um amigo diz que parecem pessoas feitas de geléia). Pudera: um mero muffin, que eles comem de lanche como a gente come um pedaço de bolo de cenoura, mais parece o bolo inteiro. O bagel, que é para eles como o pão-de-queijo é para a gente, é um pão em forma de rosca, massudo e pesado, com umas 300 calorias (mas eles sempre passam cream-cheese, então fica mais calórico). Quando vim morar aqui, os cookies tinham o tamanho de um CD, que para mim já era enorme. Hoje em dia, os cookies têm o diâmetro de uma mini-pizza! Ontem vi na TV um lugar que vende hambúrgueres do tamanho de um bolo de noiva: dois quilos de carne, meio quilo de alface, um lago de maionese e dois pães gigantescos. Se você comer tudo em menos de uma hora, o hambúrguer é por conta da casa.

Até as laranjas e as cebolas são agigantadas. A gente liga a TV e é bombardeado com propaganda de comida (quando não é propaganda de carro). Comerciais de doces, congelados, restaurantes - não só de McDonald's. Transformaram tudo em McDonald's. Os subúrbios estão tomados por redes de restaurantes de várias especialidades - Olive Garden (italiano), Red Lobster (frutos do mar), Olé! (Tex Mex), Applebee's (americano). O restaurante de rede padroniza culinárias populares; faz comida com cara apetitosa, caseira, até mesmo com toque gourmet (basta pôr vinagre balsâmico), de preço barato e sabor inofensivo. Não há sustos quando há homogeneidade. Pelo país inteiro, espalham os mesmos letreiros, ambientes e cestas de pão de alho.

Outro dia fui a um restaurante (não de rede) e vi pela primeira vez pizzas de verdade nos EUA: assadas no forno a lenha, massa fina, recheios delicados. Nada daquele pão grosso e aerado, cheio de óleo e queijo, vendido pela Pizza Hut. Disse aos meus amigos que, finalmente, via pizza como se deve neste país.

Uma me chamou de esnobe. O outro tirou sarro: "São Paulo não é exatamente conhecida por suas pizzas…" (Gente, ninguém aqui sabe que São Paulo tem uma das melhores pizzas do mundo. Preciso trazer esses gringos para uma imersão no domingo paulistano.) Mas eu dei a prova final de nossa superioridade: a Pizza Hut não pegou no Brasil! Quase faliu! Por aqui, no entanto, Pizza Hut e congêneres são a regra (e pizza de forno a lenha, a exceção). Qualquer biboca que vende pizza na esquina faz a mesma massaroca da Pizza Hut (em São Paulo, a biboca da esquina faz pizza decente - incluindo a pizza de padaria, de forno a gás. Quem já foi à paulistana Venite sabe…).

Mas eu me divirto. Uma amiga torceu o nariz quando contei que a gente come goiabada com queijo. "Cheese? Yuck!" ("yuck" = eca). Ora! Sabem qual o acompanhamento tradicional do peru assado no dia de Ação de Graças? Batata-doce amassada servida com pedacinhos de marshmallow, abóbora assada com açúcar mascavo, além de um molho que consiste em geléia de groselha. (Provei tudo isso e gostei.)

Outro dia uma amiga me contou que o sabor de infância para ela é sanduíche de manteiga de amendoim com geléia - o alimento infantil padrão daqui. Por que raios alguém inventou a combinação específica de pão, creme de amendoim e geléia (de uva, de preferência)??? Disseram-me que a manteiga de amendoim dá sustância, mas é muito seca - aí entra a geléia, para dar umidade e um gostinho. Meu gosto de infância é um sanduichinho de pão seven boys, com a casca marrom esfarelenta e doce, mostrando o amarelo e o rosa das fatias dobradas de queijo e presunto. Acho que já sei a primeira coisa que vou comer quando chegar em São Paulo nas próximas férias.

* * *

Pus o paladar norte-americano à prova com comidas brasileiras um par de vezes. Primeiro foram as apostas seguras: pão-de-queijo e brigadeiro. O pão-de-queijo, ou cheese ball, foi sucesso total. Gostaram do brigadeiro, mas acharam um pouco doce demais. (Tenho uns amigos brasileiros que vivem reclamando que os doces norte-americanos não são doces o suficiente.) Depois fiz caipirinha - nem preciso dizer que foi um hit. Alguns já conheciam o drinque poderoso, que fez diversas vítimas (uma canadense ficou traumatizada). Também ofereci coisas prontas: sonho-de-valsa (não impressionou muito); paçoca (ganhou alguns fãs); chá mate (todo mundo adorou). Por fim, na semana passada, o maior desafio: fiz moqueca de peixe. Com todos os acompanhamentos: pirão, farofa e arroz à brasileira (refogado). Só não tive coragem de pôr azeite-de-dendê (depois alguém me processava por indigestão…), então ficou sendo uma espécie de moqueca capixaba. Foi a apoteose. Lembro-me de rostos em deleite, exclamando: "obrigado! Nunca provei um peixe tão bom!". O pirão, cuja aparência não inspirou confiança no começo, foi um dos preferidos. O pessoal está até hoje falando nos pratos brasileiros (falando em termos, porque ninguém conseguiu aprender a dizer "moqueca"… Mas quem precisa saber os nomes quando se tem boca e barriga vazia?)

Daniela Sandler
Rochester, 29/5/2001

 

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