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Quinta-feira, 24/10/2002
Moça Com Brinco de Pérola, de Tracy Chevalier
Ricardo de Mattos

No ano de 1.648 é assinado o Tratado de Westfalia, o qual além de encerrar a Guerra dos Trinta Anos, faz a Espanha reconhecer formalmente a independência holandesa. Até esta data a Holanda, juntamente com a Bélgica e outros Estados, era domínio espanhol: reinava a casa de Habsburgo. Independente, tratou de desenvolver-se e hoje todos sabemos de seu poderio comercial no século XVII, bem como de seus avanços marítimos que lhe permitiram, dentro de seu plano de expansão, pretender o Nordeste brasileiro - cabendo ao Pe. António Vieira defendê-lo diplomaticamente por Portugal - e a fundar colónias na América do Norte, entre as quais a de Nova Amsterdam - actual Nova York.

Rechaçando elos com os antigos dominadores, a Holanda mostrou-se aberta ao protestantismo, acolhendo porém uma versão mais próxima do puritano inglês que do luterano germânico. A consequência disto para as Artes é a fria recepção ao Barroco, uma das principais armas da Contra Reforma (pensamos aqui em Rubens - 1.577/1640 - , mas ele nasceu em Westfalia, sua família era de origem belga e católica e foi em Antuérpia onde ele estabeleceu-se). Das Artes em geral para a Pintura em particular, verificamos a diminuição do apelo à temática religiosa e o desenvolvimento da retractística, da paisagística e das cenas interiores ou familiares, estas últimas já típicas daquela região.

O gosto holandês pela Pintura foi imenso. Na verdade, o número de pintores no século XVII ultrapassa o milhar. Decorre disto que muitos dedicavam-se a esta arte como actividade paralela a uma principal de subsistência, e quem vivia do ofício precisou especializar-se. Aquele que se destacasse pintando marinhas deveria dedicar-se a este ramo, pois por ele seria procurado pelo público.

Na retractística é desenvolvido um novo estilo. Até então os nobres e altos dignatários da Igreja monopolizavam a atenção dos pintores, incumbidos de deixar transparecer o antigo sangue e poder de seus clientes. Os pintores holandeses, a começar por Franz Hals -1.580/1.666 -, encontraram seu público entre uma burguesia rica e ascendente que parecia rejeitar de bom grado o formalismo em vigor. Quando até mesmo a informalidade das poses era planejada, conforme demonstra Rubens em seus quadros familiares ou no Os Quatro Filósofos, a nova vertente usava seu talento no cotidiano, flagrando os melhores e mais espontâneos momentos de seus clientes.

A especialização acabou levando ao aperfeiçoamento. Geração após geração, os pintores elaboravam quadros cada vez mais refinados em seu ramo. A própria temática foi sendo levada para um segundo plano, pois os artistas passam a tirar muito de poucos objectos. Uso aqui o exemplo do historiador da Arte E. H. Gombrich: "Assim como palavras triviais podem fornecer o texto para uma bela canção, também objetos triviais podem fazer um quadro perfeito". Na paisagística inicia-se com Jan van Goyen e posteriormente com seu genro Jan Steen a tradição herdada do francês Lorrain de captação do pitoresco na paisagem e das cenas populares.

Este o cenário no qual nasceu o pintor Johannes Vermeer no ano de 1.632 em Delft, cidade da qual não deve ter saído até sua morte em 1.675. Sabe-se muito pouco sobre sua vida, sendo controverso até mesmo o número de suas telas. Os especialistas divergem entre 21 e 40. Pintou tão pouco pois provavelmente deveria possuir uma actividade principal e essas telas atendessem apenas clientes particulares.

Apesar de ter pintado alguma paisagem, o reino de Vermeer encontra-se nas cenas interiores, domésticas. Espaço, Luz e Cor foram combinados de forma a criar cenas de impressionante precisão. A exactidão de moedas e mapas já foi constatada por numismatas e cartógrafos. Provavelmente o pintor possuía intimidade prática com os instrumentos incluídos em alguns quadros. Não basta pintar a mão posicionada para a execução, necessário poder imaginar a emissão dos sons.

As pessoas e coisas ao redor parecem conservadas em âmbar. Criou verdadeiras "Naturezas Mortas com Seres Humanos". Todas parecem absorvidas em algum pensamento ou fazer uma pausa. Em sua maioria temos figuras femininas e o Silêncio pode ser considerado o elemento unificador da obra de Vermeer. Ele buscou captar o exacto momento em que elas param. Assim o quadro Dama Sentada À Espineta, no qual a moça interrompe a execução para ver quem chega - no caso nós, os espectadores - e assim também o quadro A Carta, no qual a mulher pára de tocar a viola de gamba para receber o envelope. Apesar da presença de instrumentos musicais é a quietude quem predomina, seja interna, seja externa, como no Vista de Delft pintado às 7h10 - horário de menor movimento, portanto - como pode-se perceber com algum esforço no relógio da Igreja. Toda a obra de Johannes Vermeer pode ser apreciada no excelente sítio www.abcgallery.com.

Apesar de esquecido durante um longo período, tão longo que levou àquela confusão referente ao número de suas obras, Vermeer é um dos grandes nomes da Arte universal. As atenções tornaram a ele no século XIX e quem quiser procurar poderá encontrar referências neste período de redescoberta no Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust (1.871/1.922). Nos últimos anos verifica-se o lançamento de um ou outro livro sobre sua vida escrito de forma romanceada, como O Quadro da Menina de Azul, de Susan Vreenland, e Moça com Brinco de Pérola, de Tracy Chevalier, escritora norte-americana residente na Inglaterra. Este último é um livro bonitinho, mas deve ser lido com atenção para o meio, para a época, e com alguma noção de História da Arte, sob pena de transformar-se n'um simples relato das desventuras de uma empregadinha, por mais "poética" que a autora tenha tentado ser.

É narrada a história de Griet, jovem protestante de dezasseis anos contratada para trabalhar na casa do pintor, com quem acaba envolvendo-se ainda que de forma "platónica" - tal como entendido isso hoje. Temos sua chegada à casa, suas desavenças com as crianças, primeiras impressões no estúdio de Vermeer, a origem e desenvolvimento de sua inclinação por ele, até chegar no ponto culminante: servir-lhe de modelo para um de seus quadros mais famosos, o Moça com Brinco de Pérola, também conhecido por Mulher de Turbante Azul. A falta de registro indicando quem a verdadeira retractada permitiu à autora elaborar este retracto provável. Tracy Chevalier é uma grande admiradora da obra de Vermeer, e este apego levou-a a bem reconstruir a época, os cenários e os costumes. Os detalhes mostram uma dedicação estendida no tempo, percebendo-se não ser um entusiasmo momentâneo. Os poucos dados exactos sobre a vida de Vermeer, porém, permitiram-lhe especular bastante.

E nesta especulação acolhe uma tese bem antipática: a do uso pelo pintor de uma câmara escura (com "a" mesmo) para a execução de suas obras. Foi coetâneo do artista o biólogo Van Leeuwnhoek, também personagem do livro, responsável pelo aperfeiçoamento das lentes de aumento. Suscita-se actualmente a possibilidade de ele ter emprestado a Vermeer um aparelho semelhante às antigas máquinas fotográficas, daquelas de tripé, para que este pudesse enxergar melhor aquilo que pintava. Há meses atrás o Estadão trouxe uma reportagem sobre isso, mas achei-a tão esdrúxula que nem guardei o caderno. As "provas" para esta tese são buscadas directamente nas telas, não se deu notícia da existência de uma dessas câmaras, de uma réplica, de desenhos, ou de cartas: nada. Pouco sabe-se da vida pessoal e profissional do pintor, mas dão como certo o uso do aparelho. Esta tese é questionável ao ponto da descrição do uso da câmara escura demonstrar sua pouco, ou mesmo nenhuma, utilidade na pintura dos quadros: montando o cenário e posicionando os modelos, o pintor espiaria por ela para só então iniciar o trabalho. Parece que alguém não se conforma por Vermeer ter pintado tão bem e desenvolve este tipo de argumento só para dizer: "com auxílio de aparelhos, até eu sei pintar".

Para ir além




Ricardo de Mattos
Taubaté, 24/10/2002

 

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