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Sexta-feira, 25/10/2002
Lula: sem condições nenhuma*
Julio Daio Borges

fonte: marioav.blogspot.com
Arte de Mario AV

"[Até o século XIX] o idiota era apenas o idiota e como tal se comportava. E o primeiro a saber-se idiota era o próprio idiota. Não tinha ilusões. Julgando-se um inepto nato e hereditário, jamais se atreveu a mover uma palha, ou tirar uma cadeira do lugar. Em 50, 100 ou 200 mil anos, nunca um idiota ousou questionar os valores da vida. Simplesmente, não pensava. Os 'melhores' pensavam por ele, sentiam por ele, decidiam por ele. Deve-se a Marx o formidável despertar dos idiotas. Estes descobriram que são em maior número e sentiram a embriaguez da onipotência numérica. E, então, aquele sujeito que, há 500 mil anos, limitava-se a babar na gravata, passou a existir socialmente, economicamente, politicamente, culturalmente etc. Houve, em toda parte, a explosão triunfal dos idiotas."
(Nélson Rodrigues, Flor de obsessão [Cia. das Letras, 1997])

Agora é Lula. Seria cômico se não fosse trágico. Vivemos a mesmíssima euforia que precedeu a eleição de Fernando Collor de Mello, só os lulistas não percebem. Mario Sergio Conti, inclusive, já colhe farto material para um novo Notícias do Planalto. Afinal, quando o tombo vier (e ele vai vir grandão), os votantes vão todos evaporar. Como os colloridos evaporaram. "Você votou no Collor?", "Eu, não!", "E no Lulla, você votou?", "Também não!". A campanha está tão emocionada que basta insinuar uma objeção para ser eternamente malhado no paredón ideológico. Ainda assim, alguém precisa mostrar a essa legião de fanáticos religiosos que eles estão errados. Companheiros, Lula não é Deus! O Partido dos Trabalhadores não está acima do bem e do mal!! Esta eleição casada, de presidente, governador, senado e câmara, tendo um partido único, hegemônico, será, para a democracia, um desastre!!!

Não adianta, o Brasil nããão aprende. [A História diz: — Eu canso de (me) repetir, mas ele nããão quer saber.] Em 1984, tivemos as "Diretas Já": Praça da República, Fafá de Belém, Hino Nacional — aquela coisa. Em 1985, veio nosso primeiro redentor em décadas: Tancredo Neves. Morte súbita, aos cinco do primeiro tempo (esse, realmente, não entra na conta). Em seguida, o qüinqüênio de Sir Ney, o cospe-fogo-de-marimbondo. (Com exceção do excelente povo do Maranhão, ninguém parece apreciá-lo muito hoje, embora todo mundo tenha caído direitinho na lorota do Plano Cruzado e do Tem Que Dar Certo.) Vendia-se, naquele entonces, a ilusão da Nova República. [E não vem que não tem: todo mundo comprou.] Sai Ney, com 80% de inflação, e entra o Caçador de Maracujás. [Aí, todo mundo se deixou seduzir — de novo —, feito Claudia Raia, pelo quarentão, enxutão, playboy das Alagoas.] Sai Falcon, entra Pica-pau. Fusca vai, fusca vem, desponta o Ociólogo. [Agora sim: uma sumidade, um "homem-de-esquerda", poliglota, uspiano... todo mundo acreditou de novo! (Mas é incrível! Vocês não cansam?)]. Um detalhe importante: reeleito, em 1998, por maioria absoluta (embora atualmente seja costume evocar aqueles oito longos anos; aliás: — Quedê [de novo] os votantes?). Pelas contas foram: um (1984), dois (1985), três (1990), quatro (1992), cinco (1994), cinco e meio (1998)... vá lá, seis... Seis Salvadores da Pátria em menos de vinte anos! E estão preparando o sétimo!! Dá quase um para cada triênio!!! Ula-lá!!!!

[Mas desta vez é diferente, companheiro. É a primeira vez — em quinhentos anos (!) — que o Povo vai votar contra a Elite.] Peraí! Calma! Alto lá! Do fim para o começo: — Quem disse que a "elite" vai votar contra o "povo"? Por acaso, os Magalhães, os Marinho e os Setúbal não vão votar no Lulla? Depois: — Quem disse que essa é a primeira vez, em quinhentos anos, que tentam salvar o Brasil das forças do mal? E o Jango, e o Jânio e o Juscelino? E o Getúlio? E a Revolução de 30 e a Proclamação da República? E a Independência? E a Abolição da Escravatura? E Tiradentes? E Dom João? [Ah, mas Lula é como nós. Lula veio de baixo. Lula é do povo...] Antes de tudo, qual o critério para ser "do povo"? Para início de conversa, segundo pesquisa do IBGE, se você está na internet agora (lendo este texto), certamente que você não é "do povo". Mais adiante, "vir de baixo" não qualifica ninguém (assim como "vir de cima" [simplesmente] também não qualifica). Por último: "Lula é como nós"... Nós quem, Cara Pálida? Essa classe média, adesista de última hora, não pode ter nascido toda em Garanhuns, crescido no Grande ABC, disputado três Presidências da República e permanecido desempregada, quieta e calada, durante tanto tempo!

[Lula pode não ser isso tudo, mas uma coisa é certa: ele formou o maior partido de esquerda da América Latina.] Ah, o argumento da total ausência de experiência, que os lullistas amam odiar... Vamos fazer a seguinte analogia: um office boy trabalha toda a sua vida numa empresa e, de repente, chega para o presidente e proclama: — Eu quero sentar na sua cadeira! — Mas como?, diz o presidente, De onde você tirou essa idéia? — O senhor me conhece! Eu sou mais que capacitado! Eu visitei cada rincão desta empresa, privei da intimidade de cada funcionário, sei dos sonhos e das aspirações de cada um aqui dentro! — Tá bom, você pode trabalhar na área de Recursos Humanos, se quiser, mas isso não te qualifica para a ser presidente. — Mas eu organizei greves, eu lutei pelos direitos dos trabalhadores, eu legislei em favor deles! — Parabéns, você já pode se candidatar ao cargo de sindicalista; pode ir para o Jurídico da empresa, também, se quiser... Mas, cá entre nós, qual a sua experiência administrativa? Você, digamos... já foi vice-presidente? — Não. — E diretor? — Não. — Vice-diretor... quem sabe? — Não. — Que tal, gerente? — Não. — Quiçá, gerente-adjunto? — Não. — Auxiliar-de-escritório? — Não. (E assim sucessivamente...) Fora que, vamos e venhamos, em termos de geopolítica, o que é hoje a "América Latina" (e o que é o maior partido dentro dela)? Alguém realmente se importa? Já, sobre fundar uma legenda: Maluf também fundou a sua; Enéas fundou o Prona e foi o deputado mais votado de todos os tempos. [Ah, mas o PT, ainda assim, é o maior do Brasil.] Cada um é "o maior" em seu devido tempo. (Espere só pela derrocada, ou pelo racha, do PT...)

[Não tem mesmo jeito de te convencer. Não vá me dizer que você agora espera que eu vote no Serra...] Eis o maior erro dos eleitores de Lulla: achar que as críticas a ele inevitavelmente implicam em elogios ao Governo (e ao candidato do Governo). O ideal, neste momento, seria uma grande manifestação de repúdio, bem no estilo Agora Anula. Infelizmente, porém, os brasileiros preferem eleger seu Forrest Gump. Também pudera: num País em que roqueiro é escritor, e membro da Academia Brasileira de Letras; em que modelo é ator, e ator é produtor de cinema; em que publicitário é cineasta, e cineasta é formador de opinião; em que sexóloga é prefeita, e prefeita é colunável; em que colunável é pistoleira, e pistoleira é apresentadora de televisão; em que filho de famoso é cantor, e cantor é intelectual dos anos 60; em que letrista é poeta, e poeta é artista multimídia; em que artista multimídia é detento, e detento é celebridade; em que ser celebridade é falar errado — e falar errado é ser Presidente da República...

"Por que há o comércio com os demónios de ser mais fácil que o comércio com a gramática? Quem, através de longos exercícios de atenção e de vontade, consegue, conforme diz, ter visões astrais, por que não pode, com menor dispêndio de uma coisa e de outra, ter a visão da sintaxe? Por que há-de gastar-se toda a energia da alma no estudo da linguagem dos Deuses, e não há-de sobrar um reles bocado com que se estude a cor e o ritmo da linguagem dos homens? (...) Dizem que há grandes matemáticos que erram adições simples; mas aqui a comparação não é com errar, mas com desconhecer. Aceito que um grande matemático some dois e dois para dar cinco: é um acto de distracção, e a todos nós pode suceder. O que não aceito é que não saiba o que é somar, ou como se soma."
(Fernando Pessoa, Livro do desassossego [Cia. das Letras, 1999])

fonte: millor.com.br
Arte de Millôr Fernandes

* antes que alguém venha me dizer que há erros de português no título (e ao longo do texto), eu mesmo afirmo: sim, os há; e já que muitos estão dispostos a tolerá-los no próximo Presidente da República, que tal começar o seu exercício já por esta página?

Julio Daio Borges
São Paulo, 25/10/2002

 

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