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Sexta-feira, 1/6/2001
Asas de morcego empanadas
Rafael Lima

Coisa que sempre me intrigou foram as receitas culinárias. Havia (e eu nunca tive dúvida disso) algo de oculto, impalpável, entre o que diziam aqueles textos aparentemente tão lógicos, e a seu resultado final, concreto, que degustamos, com sabor, aroma, cores e formas inexplicáveis. Uma arte, sem sombra de dúvida, porém - como toda arte que se preza, aliás - uma arte com um quê de mágica, mística, proveniente de um conhecimento iniciático, transmitido de boca para ouvido, qual segredos de druidas, e aperfeiçoada na prática cotidiana.

Certo professor meu da faculdade contava uma história exemplar. Quando tinha se separado, na primeira oportunidade em que se viu com doses iguais de fome, disposição e coragem, encarou um livro de receitas e reuniu os ingredientes para fazer não um prosaico bolo, algo mais refinado: uma refeição daquilo que costuma se chamar de comida de sal. O que só serviu para aumentar sua desolação, quando se deparou com o termo "refogar". O significava aquilo? Como é que o autor daquele livro deixava uma palavra tão importante quanto freqüente sem explicação? Sem perceber, meu ex-professor, derrotado em meio a tomates e colheres de pau, tinha descoberto que a culinária não se reduz a receitas, que comida não se mede pelo Sistema Métrico, que seu cérebro cartesiano e racional não era capaz de lidar com as surpresas da panela.

Tomado de compaixão, compartilho com ele pelo menos uma queixa: já que desistimos de "untar, assar em fogo brando, dourar e grelhar ao ponto", deixando a compreensão dessas palavras tão obscuras para os iniciados nas artes de forno & fogão, fiquemos apenas com os ingredientes. Nem assim. Quanto pesa uma pitada de sal? Ou, pior ainda, o que significa salgar à gosto? Como posso prever o gosto que meu bife vai ter antes de passar pela frigideira? E mais, que padrão estranho se usa ao dizer "uma colher de chá de manteiga, duas colheres de sopa de trigo"? Todas as colheres de sopa do mundo são iguais? E as de chá ? (quando eu era criança ficava me perguntando que comidas bizarras seriam chá de manteiga ou sopa de trigo...) Será possível que a colher que eu estou usando agora é igual a de quem fez a receita? Vá lá que não estejamos falando de medidas exatas, mas que raio de ciência é essa que permite que dois experimentos sejam conduzidos em dois locais diferentes, de maneiras diferentes, obtendo o mesmo resultado? Teria sido essa a explicação que afastou os homens, tidos como seres mais racionais, tanto tempo da cozinha, o tempero picante a nos arder a língua no prato feito da discriminação?

A segregação a que o preparo dos pratos perfeitos foi submetido ao longo do tempo foi causa e efeito desse caráter obscuro das receitas, e ainda hoje há ecos desse sentimento de inferioridade quando se usa a palavra cozinha para referir-se à seção rítmica de uma banda de rock, a que fica no fundo - do palco e da música. A semelhança com a maneira de enumerar feitiços, despachos ou poções mágicas também não é mera coincidência, a diferença é que os ingredientes das últimas são mais difíceis de encontrar... Que tipo exótico de delicatessen venderia lábios de barata roxa da Mongólia? Quantas aventuras o Panoramix não viveu na busca do ingrediente alquímico, a pedra de toque filosofal que transformaria ervas e vísceras em magia líquida? A Culinária deve tanto à alquimia, à bruxaria e aos encantamentos naturais quanto o projeto de máquinas e mecanismos deve à guerra. E por mais chato que seja admitir, aquela imagem da bruxa de desenho animado, de capuz negro e colher de pau a remexer um caldeirão fumegante, é o antepassado dos risonhos e francos mestre cucas dos programas vespertinos na Tv. Cozinhar, assim como a magia, é a arte de reverter probabilidades, transformando o reles no surpreendente.

E cada vez mais isso está sendo percebido pelo senso comum: ao integrar, nas novas soluções de arquitetura de interiores, a cozinha à sala, enobrecendo aquele recinto, numa inacreditável reversão de valores da sociedade. Saber preparar um bom prato é uma peça importante no quebra cabeça da sofisticação, e o que há 500 anos dava em exorcismo e fogueira, hoje pode ser o catalisador que detona a química de uma noite de puro romance. "Ter um pé na cozinha" não é mais sinônimo de segunda categoria. Assim, a barreira que separava a arte de degustar (Gastronomia) da arte de preparar bons pratos (Culinária) - no fundo, a mesma coisa, como se vê no verbete a seguir - vai aos poucos sendo transposta pelos mais curiosos & gulosos. A culinária saiu da cozinha e veio para a sala de estar...

Gastronomia

Termo grego formado por Gaster (ventre, estômago), radical "nomo" (lei) e sufixo "ia" de substantivo, ou seja, estudo e observância das leis do estômago. De estudo das leis do estômago, passou a de preceitos de comer e beber bem; arte de preparar as iguarias para obter delas o máximo de deleite, tornando-as mais digestivas. Arte de cozinhar de maneira que se proporcione o maior prazer a quem come. Arte de regalar-se com finos acepipes ou iguarias. Também se entende por gastronomia o ato de comer mais por prazer do que por necessidade. Segundo Molière, que contestou a gastronomia: "Comemos para viver, não vivemos para comer". Para alguns estudiosos, a gastronomia é uma ciência, já que certas leis físico-químicas têm de ser observadas na preparação do alimento. Na opinião de Brillat-Savarin, "a gastronomia é o conhecimento fundamental de tudo o que se refere ao homem, na medida em que ele se alimenta". Considerado um filósofo culinário, Brillat-Savarin afirmou que a gourmandise (termo francês para a gastronomia) é a preferência apaixonada, racional e habitual pelos objetos que apelam para o paladar. Em seu livro A Fisiologia do Gosto, afirma: "Todo homem que come até a indigestão ou se embriaga corre o risco de ser cortado da lista dos gastrônomos". (do Pequeno Dicionário da Gula - valeu, Vera!)


Rafael Lima
Rio de Janeiro, 1/6/2001

 

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