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Quinta-feira, 31/10/2002
O Pesadelo De Moravec
Adrian Leverkuhn

"There is a possibility that a scientist who is very much involved his whole life [with computers], then the next life ... [he would be reborn in a computer], same process! [laughter] Then this machine which is half-human and half-machine has been reincarnated." - Dalai Lama, em "Gentle Bridges: Conversations with the Dalai Lama in the Sciences of Mind".

O Pesadelo De Moravec ou o sonho, consiste no seguinte: uma máquina vem, aplica anestesia em você, abre sua cabeça, e suga o seu cérebro. Então ela lê o seu cérebro, neurônio por neurônio, e vai montando uma simulação da sua mente dentro da própria máquina. Terminado o processo, o programa resultante (que chamaremos daqui em diante de "você") é executado e acorda dentro da máquina, para descobrir a sua "mente" exatamente como era antes, mas agora dentro de um "corpo" de robô*. Como o sistema continuará rodando enquanto você lembrar de trocar as baterias - e quando os componentes começarem a ficar velhos e a falhar, é só gravar uma pilha de CDs com você dentro e instalar em outro robô - alcançamos a tão sonhada "imortalidade cibernética". Tchanã!

1. but hey, not so fast! Você agora não teria mais fome. Nem sede. Nem tesão. Você não teria mais sono - na verdade, você nem se sentiria cansado - ou qualquer outra dessas sensações corporais. Esqueça o rosto ruborizando, a tontura quando se está com sono, o ar de manhãs frias enchendo os pulmões, o tato da carne contra a carne. Imagina-se que o robô teria um sistema de tato, talvez até um olfato - um olfato que poderia ser até mais aguçado, mas incapaz de lhe fazer enjoar, não importa quão ruim fosse o cheiro, ou de causar uma reação agradável. É melhor parar e cheirar as rosas antes.

Que sensações teria o ciborgue de Moravec, a mente separada do corpo? Teria ele por acaso o prazer meramente intelectual, a satisfação após resolver um problema difícil? A confusão diante de conceitos de que apenas intui, em parte, o significado? Seria capaz de sentir medo ou angústia? Como seria uma angústia 100% cerebral, sem nenhum elemento corporal, uma angústia de idéias? É claro que seria possível simular todas essas respostas humanas - mas para quê, agora que se pode ir tão mais longe, incorporar as imperfeições do Wetware? O ciborgue de Moravec é um lobotomizado.

2. Ou então os desejos ficam, mas a possibilidade de saciá-los, não. Depois de algumas semanas sem comer, mesmo que você não tenha a menor necessidade fisiológica, alguma coisa começa a ficar estranha. Os tais processos primários vão para a máquina também, e mesmo que não fossem, você ainda teria a memória para causar problemas. Da mesma forma que uma pessoa que teve um de seus membros amputado ainda tem sensações, por algum tempo, do membro que estava lá, o ciborgue de Moravec teria, ainda, falsas sensações de um corpo. Ao invés de um phantom limb, um phantom body! Mesmo supondo que a mente no robô tenha a mesma capacidade de adaptação que no corpo humano, acostumar-se completamente à nova "interface" levaria anos, se é que um dia se chegaria a tanto. Enquanto isso, você é vítima de dores insuportáveis, formigamentos por todo o corpo, náuseas, calores e frios sem a menor relação com a verdadeira temperatura. Como combater essas sensações? (E, ainda mais importante, você teria alguma chance de vencer o embate?) Aqui, o ciborgue de Moravec passa de lobotomizado para paciente ideal da psicanálise: até para coceira, ele precisa deitar no divã.

3. Ou você tem uma chavezinha (posicionada estrategicamente, como uma homenagem irônica ao wetware) que, uma vez ativada, desliga a maior parte da mente e coloca seu índice de prazer no máximo**, indefinidamente. O paraíso.

4. O inverso também vale: imagine que em um dado momento ocorra uma falha no circuito, e, embora os mecanismos interiores continuem funcionando perfeitamente, você perca qualquer meio de interação com o mundo exterior. Silêncio absoluto: apenas sua mente, consciente e em intensa atividade, como raras vezes durante sua vida no Wetware, permanentemente. Alternativamente, e forçando um pouco, imagine a mesma pane danificando a memória, como num caso de amnésia. Imagine isso durando anos.

5. Ou ainda: o sub-humano, a fragmentação. A mente de uma atendente de SAC é separada de seu corpo e tudo é apagado e remodelado, exceto o estritamente necessário para seu trabalho. O resultado é um ser consciente e, vá lá, inteligente, que atende jovialmente ao telefone 24 horas por dia. Em seguida, você faz copy/paste dessa atendente algumas milhares de vezes, criando um exército dessas criaturas. Podemos ir ainda mais longe: imagine agora esses fragmentos de pessoas, esses seres conscientes modelados para exercer uma função (e nunca reclamar, ou mesmo pensar a respeito) sendo comercializados. Uma espécie de robô-empregada-doméstica como no seriado dos jetsons, só que despertando a certeza instigante de que aquilo ali foi, anteriormente, um humano como qualquer outro, mas de quem tiraram tudo que o poderia impedir de ser o empregado ideal - e, no entanto, o original possivelmente ainda anda por aí, completamente inalterado. Ou: em certo ponto, você é replicado (copy/paste) e um pedaço de você (incluindo, naturalmente, a sua "consciência", seja lá o que for isso - abordaremos esse ponto mais adiante) é usado para ser a nova versão do Bonzi-Buddy ou daquele clipe chato do Word.

6. Que tal escolher seu temperamento como se escolhe tintura para cabelo? Cirurgia plástica para o Self! Transfusão de personalidade!

7. Uma última face do ciborgue, antes de partirmos para as outras questões: as mentes, agora transformadas em informação pura, podem experimentar uma união entre si que não seria possível quando separadas pelos seus corpos. Neste último cenário, todos os ciborgues são assimilados em um grande organismo coletivo, com uma espécie de consciência (ou um mecanismo regulador suficiente próximo disso para efeitos práticos) articulando a relação entre as várias mentes, agora desprovidas de qualquer individualidade.

De todas as fantasias aqui expostas, essa última é talvez a mais comum. Seu apelo, ironicamente, remonta ao mesmo desejo de uma regressão a um "estado originário" que leva muitas pessoas a idolatrarem as comunidades primitivas (e tudo que estiver relacionado a elas). É uma idéia já prefigurada na "aldeia global" de Mcluhan, nos usos por analogia de conceitos como "comportamento emergente" para falar de comunidades humanas, e em muito do que foi dito (e que ainda se diz) sobre a Internet.

[Continua em "O Replicante: um problema para ciborgues".]

Notas
* poderia ser qualquer outro substrato tecnológico, mas eu prefiro imaginar o robô olhando para o seu corpo de cabeça aberta e oca a sua frente quando "abre os olhos" pela primeira vez.

** float prazer; aparecendo numa barrinha no canto baixo-direito da tela/campo de visão.

Nota do Editor
Adrian Leverkuhn é também editor do blog Apeirophobia.

Adrian Leverkuhn
Brasília, 31/10/2002

 

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