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Terça-feira, 5/6/2001
Kerouac era viciado em burritos
Arcano9

Vamos começar com o que é absolutamente necessário: você gosta de comida mexicana? Se não gosta, Ok, parceiro, desça já deste trem.

Segunda pergunta: gosta de burritos?

Eu gosto, e muito. É uma invenção divina. Lembro a primeira vez em que eu fui apresentado. Acredita que até dois anos atrás eu nunca havia ido a um mexicano? Estava de partida para viver aqui na Inglaterra e um amigo me levou no La Botequila - um finado restaurante-bar-clube que funcionava na região da nova Faria Lima, em São Paulo. O lugar era bem alto astral e a comida... imagine, o burrito nem era bom, e mesmo assim eu falei "tenho que experimentar mais esse treco". O treco: uma tortilha grande de trigo - um pão bem fino em forma de panqueca. O recheio da panqueca é de carne de vaca bem temperada, cozida e desfiada, misturada com feijão meio como a gente come em forma de tutu. Mas esse recheio pode variar, tem burritos de frango, de carne de porco, com salada, com arroz... Depois de enrolado, o burrito (que nos lugares quentes tem uns 20 centímetros de comprimento) é colocado no prato e acompanhado de guacamole fresca e aquele molho de tomate com tabasco. Alguns restaurantes também apresentam o burrito com acompanhamento de arroz, ou com aquele queijo derretido por cima, mas... bem.... estou indo depressa demais. E ainda não é hora da janta.

Como saboreia melhor quem sabe o que está comendo, vou levar você para uma curta jornada de descoberta e apreciação gustativa. A busca do Santo Graal dos burritos, se você quiser chamar assim, pois, para mim, foi mais ou menos isso, numa viagem que fiz à Califórnia.

A Califórnia é a terra do burrito. Disso eu não tenho dúvida. Não é o México, porque no México o burrito é apenas mais uma estrela das Plêiades enchillada-taco-burrito-tamal-quesadilla. Na Califórnia, o burrito se vestiu com a cultura fast-food e virou burrito Taco Bell, se vestiu com os vegetais da galera cool de São Francisco e ficou mais natureba. E ganhou status de especialidade, uma especialidade paralela ao vinho do Napa Valley. Mas, antes que você pergunte, sim, estive no México, em Tijuana, e fui comer. A cidade, empoeirada como no filme Traffic, tem só um atrativo - a conhecida Avenida de la Revolución, intoxicada de compadres que querem tirar dólares dos turistas a todo custo. Difícil achar comida mexicana realmente decente naquelas ruas, ainda mais para mim, que não queria pernoitar na cidade. Onde eu comi foi numa lanchonete no térreo do hotel Nelson, na própria avenida, mas não achei nada de mais. Aliás, tudo naquela cidade é meio decepcionante. Talvez eu já estivesse sugestionado pelo que haviam me dito, que eu não precisava ir ao México para experimentar burritos celestiais.

Desencanei do México (não tinha tempo para ir mais ao sul, ficou para a próxima), peguei a fila no posto da fronteira, rasguei o asfalto, ultrapassei San Diego e o Monte Palomar e descansei meus olhos no sol permanentemente escaldante, alguns dias depois, em East Los Angeles - a região de maior concentração de mexicanos na segunda maior cidade dos Estados Unidos.

Lá pela Cesar Chavez Avenue há numerosas taquerias, mas escondida em uma rua transversal fucei e descobri um lugar sem dúvida especial. Era uma da tarde de um dia normal da semana, terça-feira, e não notei muitas lojas ou escritórios por perto - ainda assim, a fila na porta era de umas dez, quinze pessoas, beirando o asfalto fumegante. De turista, só eu. Todos na fila falavam aquele dialeto espanglish (quem já esteve no sul da Califórnia aprende a reconhecer). Depois da espera de 20 minutos (que eu enfrentei meio São Tomé), abriu-se a porta do pequeno salão do El Tepeyac Café, e o ar condicionado me deu um abraço. Paredes não tão opressivamente decoradas com motivos mexicanos, mas um mínimo necessário. Ambiente escuro, mas agradável. Um balcão e várias mesas, nenhum grande conforto. Sentei-me no balcão e a garçonete gorda e sorridente me entregou o cardápio.

Sabe quando você vê uma coisa que você não acredita? Dezenas de tipos diferentes de burritos. Burritos de carne, de frango, burritos (mojados), burritos de vegetais. Um cardápio de burritos!

Como não sou burro, pedi um dos mais populares, para ver o que o pessoal já havia provado e aprovado. O que veio foi um prato gigante, com um burrito com carne gostosa, bem desfiadinha e suavemente picante, feijão, queijo derretido por cima e coberto com uma infernal calda de molho vermelho picante. Um burrito "mojado". Eu, que sonho pimenta, delirei até quase ter uma indigestão. Se você for lá, garanto que vai encontrar um burrito que combina com seu signo. O que você não vai evitar é comer demais.

Depois de jiboiar aquele banquete por uns dias, Deus me disse que era hora de voltar à jornada de fé. E para onde seguir? Que refeição poderia suplantar o banquete dos deuses do El Tepeyac?

Assim como Rio e São Paulo, Los Angeles e São Francisco são rivais no estado dourado. Talvez não tão rivais quanto as duas cidades brasileiras (não de tantas formas e de modus vivendi diferentes), mas em uma categoria com certeza: gastronomia. Qualquer leigo poderia pensar que SanFran, pela sua proximidade das regiões produtoras de vinho e por tradicionalmente ser o lar dos intelectuais, beatniks e inovadores da Califórnia, também é a capital da famosa cozinha californiana. Sim, certinho. Mas Los Angeles vence no quesito variedade, com a presença maciça de imigrantes de muitas partes do mundo e em quantidade - especialmente mexicanos. Mexicanamente falando, burritamente falando, as duas cidades vivem há anos em pé de guerra. E o motivo é a invenção do bairro de Missiones, em SanFran, o bairro-reduto dos imigrantes do sul da fronteira na cidade.

O burrito Missiones é especial. A experiência de devorar um na taqueria Can-Cún me fez lembrar da curta jornada a Tijuana. Você sai do metrô, anda por uma avenida suja e lotada de placas em espanhol, e à medida que anda pensa: "hum, esse burrito deve ser um churrasco grego melhorado". Aí chega na taqueria, que também é suja, decorada com bandeirolas mexicanas. O ruído das dezenas de pessoas que entopem do lugar oculta quase completamente a música de uma rádio local em língua espanhola, que transmite músicas de mariachis. Vejo uns caras na chapa, preparando a carne, e uns outros preparando tortilhas, um sujeito no caixa e nada mais. Peço uma cerveja Sol e um burrito completo, para levar. Eles me devolvem com rapidez e eficiência um "embrulho" de papel alumínio, de umas 300 gramas. "Pesado, hem?", penso comigo mesmo, antes de abrir o presente. O burrito Missiones é diferente dos outros por dois motivos. A tortilha (sempre fresca), em vez de aquecida no vapor, é jogada numa grelha por pouco tempo. Isso faz com que ela fique um pouco mais pegajosa, mas ela se desfaz na boca, uma delícia. O segundo motivo é o arroz. A cada mordida, você desbrava aquele território vasto e desvenda a carne, arroz, feijão, salada. Mas o que faz um burrito Missiones ser um burrito Missiones, o detalhe que fundamental, é a presença do arroz, a composição arroz-feijão (olha aí, eu inconscientemente em busca das minhas raízes tupiniquins). Da mesma forma que no El Tepeyac, um burrito da Taqueria Can-Cún é, às vezes, mais do que uma pessoa agüenta comer sozinha. Refeição perfeita para quem andou o dia inteiro de bondinho e foi e voltou a Sausalito e Alcatraz.

Se a Califórnia é mesmo a terra do burrito, muita gente insiste que SanFran é a capital. Como um colega que é dono de um site só com críticas de burritos que comeu em vários restaurantes do mundo. Fiquei espantado, porque o que ele fala da Can-Cún bateu com o que eu achava. "San Francisco é a cidade dos burritos", diz ele na The Burrito Page, "Há mais taquerias de qualidade e bons burritos nesta cidade do que em qualquer outra que eu conheça". Há um outro cara que, com grandes aspirações, inspirado em Kerouac, ousou escrever The History of The California Burrito. Muito bom para você que, mesmo tendo lido este texto até aqui, não acredita o quanto um burrito pode mudar a vida de uma pessoa normal. Na curta história, o cara lembra de uma passagem de On The Road em que Sal Paradise e uma de suas namoradas, Terry, estão em um vinhedo em Bakersfield.

Nightfall came. Terry went home for supper and come to the barn with delicious tortilhas and mashed beans.

O dono do site disse que foi à loucura quando percebeu que essa passagem significava a iniciação de Kerouac nos burritos californianos. Pode ser viagem, mas, coincidência ou não, fiquei muito, muito intrigado. Puxa! Que tipo de prato leva as pessoas a fazer leituras arcanas de trechos de On The Road?

Refletindo, digerindo, divagando, levitando meu taco Mission, fui para o hotel e aprendi que comer demais de noite é um convite à insônia. Que bom. Aproveitei mais uma noite linda na região da baía - a última, antes de voltar para Londres. Aqui, bem longe dos burritos californianos, continuo buscando surpresas nos restaurantes mexicanos escondidos, no fog. E você? O que me diz dos burritos daí?

Para ir além

The History of the California Burrito

The Burrito Page

Taqueria Can-Cún
2288 Mission St., Mission, São Francisco . Telefone 1-415-252-9560. Perto da estação Bart 16th & Mission. Evite ir muito tarde - o bairro é meio assustador à noite. A taqueria Can-Cún também tem filiais em 1003 Market St, esquina com a 6th, perto do Terderloin (também evite ir de noite) e em 3211 Mission St. O burrito básico custava US$ 5 até uns meses atrás.

El Tepeyac Cafe
812 N Evergreen Ave., Boyle Heights, East Los Angeles. Telefone 1-323-268-1960. Por um bom burrito mais uma Coca-cola eu paguei pouco mais de US$ 8 dólares.

Arcano9
Londres, 5/6/2001

 

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