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Terça-feira, 26/11/2002
Drummond: o mundo como provocação
Jardel Dias Cavalcanti


A idéia de que existe um projeto de reflexão sobre o mundo na obra de Drummond é notada por vários críticos. Para ficar com apenas um exemplo, Affonso Romano de Sant´Anna diz: "Nesse sentido tal obra constrói-se ainda como um projeto-poético-pensante conforme a expressão de Heidegger. Aí o poeta pensa o mundo através da linguagem".

É precisamente por essa relação especial, no qual corresponde o tensionamento do eu versus mundo, que a poesia de Carlos Drummond torna-se uma fonte poderosa de reflexão e compreensão íntima do mundo.

Não há como pensar o contrário, Drummond possui uma chave de grande qualidade para compreender o mundo e revelar-lhe seus enigmas: esta chave se chama poesia.

Que alegria singular se pode sentir diante de uma obra poética que é a construção de uma profunda reflexão sobre o mundo, criada para propiciar uma apreensão da própria essência da existência em sua conexão e crise com este mundo.

O poema "Sentimento do Mundo" nos dá uma pista sobre a tensa relação da poética de Drummond com o mundo. Nos dois primeiros versos ele diz: "Tenho apenas duas mãos/ e o sentimento do mundo".

São palavras significativas, de uma densidade negativa, que apontam para uma impossibilidade, para um sentimento de impotência diante do mundo. Isso fica claro numa primeira leitura. Ainda mais que o poema se encerra de uma forma terrível, anunciando um "amanhecer/ mais noite que a noite."

Mas numa segunda leitura, o poema nos faz pensar na existência de um profundo desejo de transformação do mundo, que o poeta traz impregnado no seu "sentimento do mundo".

Drummond é um poeta que trabalha não só com a crise do mundo, mas com a crise que o mundo traz para dentro do seu próprio processo criador. Sua poesia se constrói através de duplos sentidos, que muitas vezes se anunciam de uma forma negativa, mas revelando sentidos contrários que o leitor terá que perscrutar em leituras atentas de sua obra. Na verdade, é o fato de sua poesia trazer em seu próprio cerne essa tensão que faz de Drummond um dos nossos maiores poetas.

Mario Chamie chama a atenção para o caráter ambíguo da poesia de Drummond nos seguintes termos:

"O seu mundo é a ambigüidade direta das coisas e dos acontecimentos. A sua linguagem desenvolve a lição desses acontecimentos. (...) E essa ambigüidade se perfaz no contraponto e no jogo dúplice permanente de sua poderosa sintaxe, no seu afirmar-negando (...)."

Não é simples acaso que apareça, por exemplo, dentro de um livro como Sentimento do Mundo uma variedade de poesias que nos fazem mergulhar em angústias profundas e ao mesmo tempo em esperanças renovadoras.

Num poema intitulado "Os ombros suportam o mundo", estamos diante de uma ode à força da vida, que aparece renovada no "tempo da depuração". Versos como "não adianta morrer" e "a vida é uma ordem", anunciam a idade da sabedoria quando, no fundo da existência, a plenitude e o entendimento do mundo se manifestam guiados pela verdadeira vida, "a vida apenas, sem mistificação". Eis alguns versos: "(...) Mas na sombra teus olhos resplandecem enormes./ És todo certeza, já não sabes sofrer./ (...) Teus ombros suportam o mundo/ E ele não pesa mais que a mão de uma criança./ As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios/ Provam apenas que a vida prossegue/ E nem todos se libertaram ainda./ Alguns, achando bárbaro o espetáculo,/ Preferiam (os delicados) morrer./ Chegou um tempo em que não adianta morrer./ Chegou um tempo em que a vida é uma ordem./ A vida apenas, sem mistificação."

O universo da poesia Drummondiana se complica a todo momento. As grandes tensões podem ser abandonadas num instante, mas sempre voltam arrasadoras no instante seguinte. Por isso, habitam no mesmo livro um poema como o citado acima e outro como "A noite dissolve os homens", dedicado ao pintor Cândido Portinari. Nesse segundo caso, a tensão com o mundo cresce de forma surpreendente nos primeiros versos, não deixando, aparentemente, saída para a relação do poeta com o mundo. E dois versos aplicam a sentença, como que fatal, nos seguintes termos: "O mundo não tem remédio.../ Os suicidas tinham razão".

Mas em seguida, no mesmo poema, como símbolo do nascer de um novo mundo, a aurora brinda um sinal de redenção com seus tímidos raios. As palavras "suave", "simples", "macio" e "doce" sobressaltam dentro do poema que, como vimos, falava em "medo", "rumores", "sofrer" e "mortal".

Num poema denominado "Mundo Grande", também do livro Sentimento do Mundo, esta redenção do mundo é assumida, num verso final, como responsabilidade do poeta, em termos nietzscheneanos: "- Ó vida futura! Nós te criaremos."

Alguns de seus versos anunciam a prerrogativa radical do poeta: "Não serei o poeta de um mundo caduco". Mas não apenas isso, ele ainda tem mais a dizer: "Também não cantarei o mundo futuro". Embora dominado por um sentimento de derrota, acaba por não se abater, nutrindo "grandes esperanças". Para ele, apenas uma coisa interessa: "a enorme realidade". E esta realidade é o tempo, a vida e os homens, habitando o espaço do presente, como podemos ver nos versos finais do poema: "O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente".

Para fechar seu livro Sentimento do Mundo, Drummond compôs seu melancólico poema "Noturno à janela do apartamento". Em versos conclusivos, que metaforizam a vida em corrente sanguínea, nos põe diretamente em contato com sua filosofia de vida, dissertando sobre o sentido da existência:

"A soma da vida é nula.
Mas a vida tem tal poder:
na escuridão absoluta,
como líquido, circula."

Mas o sentido da ambigüidade não calou neste poema, como em quase todos os poemas que Drummond escreveu. A abertura de "Noturno..." nos traz, em contraposição aos versos citados acima, uma imagem vertiginosa de desespero: "Silencioso cubo de treva:/ um salto, e seria a morte."

Voltando um pouco no tempo, para dentro do "Poema de Sete Faces", a relação do poeta com o mundo já se afigurava problemática e, porque não dizer, negativa.

"Mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução."

Essa tensão permanente entre negativo e positivo vai ser constante nos poemas em que a reflexão do poeta interpela o mundo.

Em Drummond a tensão existencial e seu fazer poético não descansam nem por um momento. É como se uma angústia, a angústia da criação, de sobressalto o invadisse. Essa angústia se traduz na batalha pela concreção do poema, uma batalha que nos faz pensar no artista como esgrimista, tal como comentado por Baudelaire a respeito de Constantin Guys. E sobre isso, nada melhor do que recordar o poema de Drummond que tem o sugestivo título "Poesia".

Poesia

Gastei uma hora pensando um verso
Que a pena não quer escrever.
No entanto ele está cá dentro
Inquieto, vivo.
Ele está cá dentro
e não quer sair.
Mas a poesia deste momento
Inunda minha vida inteira.

A poesia de Drummond se constrói a partir do enfrentamento do mundo, na forma de um sentimento ambíguo: de seu amor pelo mundo e ao mesmo tempo de uma rejeição a este mundo. Esta tensão varia de grau, podendo beirar o desespero ou ser apenas o momento suave de uma reflexão que não tem o poder de alterar o rumo da vida.

Existe um aspecto na poesia de Drummond que é alimentado também por sua relação com o mundo: o niilismo. Vários críticos já notaram a desesperança presente no universo drummondiano. No livro Brejo das Almas, por exemplo, aparece um poema denominado "Soneto da perdida esperança". Os dois primeiros versos que abrem o "Soneto...", apresentam a situação de uma pessoa retornando para casa, pálida por ter perdido o bonde e a esperança. Claro está que a palavra bonde é apenas um recurso para ampliar a sensação de perda da esperança: "Perdi o bonde e a esperança./ Volto pálido para casa." A total inutilidade da vida aparece nos versos seguintes: "a rua é inútil e nenhum auto/ passaria sobre meu corpo." Essa auto-depreciação que clama pela morte (o eterno) estende-se à idéia de uma coletividade, pois o poema termina com o uso do plural: "entretanto há muito tempo/ nós gritamos: sim! ao eterno."

Poderíamos pensar que Drummond mergulha totalmente seu livro nesse niilismo. O que acontece, em vários poemas seguintes, é que o mundo lhe proporciona também saídas especiais, como uma ida ao cinema que, com certeza, pode apaziguar a dor da existência. É o que nos diz os seguintes versos de "O amor bate na aorta": "Meu bem, não chores,/ hoje tem filme de Carlito!"

Esse grito de esperança baseia-se inclusive num apelo ao erotismo, num poema que pelo seu título sugere que acontecimentos recentes poderiam nos levar ao suicídio. O poema chama-se "Em face dos últimos acontecimentos". Nele surge o apelo a uma saída: o prazer. "Pensavam que o suicídio/ fosse a última resolução./ Não compreendem, coitados,/ que o melhor é ser pornográfico".

Essa saída diante de um mundo em turbulência é proposto a toda comunidade humana: "propõe isso a teu vizinho,/ ao condutor de teu bonde,/ a todas as criaturas/ que são inúteis e existem (...)". Mas o elemento da ambiguidade não deixa por menos, acentuando a inutilidade das criaturas, como se pode ver nos versos citados acima.

A ambigüidade que é produzida pela poesia de Drummond e que é, sem sombra de dúvida, sua matéria-prima, vai se manifestar sempre num grande número de poemas.

O poema "Não se mate" tem como sugestivo personagem Carlos. Claro, não resta dúvida, trata-se de uma espécie de poema-confissão. O próprio poeta em situação de desespero se aconselha: "Não se mate, oh não se mate".

Há também nesse poema um clamor de resignação: "Carlos sossegue, o amor/ é isso que você está vendo:/ hoje beija, amanhã não beija,/ depois de amanhã é domingo/ e segunda feira ninguém sabe/ o que será." Mas como Drummond é um hábil produtor de sentimentos ambíguos, não se curva facilmente à resignação. A idéia de resignação é acompanhada pela certeza do sofrimento: "o amor (...) é sempre triste".

São estes tensionamentos que produzem no poema essa grandeza de reflexão sobre as situações da vida e do mundo sem, entretanto, cair no vazio niilismo que, se assim fosse, o bloquearia até de compor seu poema. Não, ele resiste, como diz um verso do poema referido: "entretanto você caminha".

A poesia de Drummond nunca deixou de ser pessimista - mesmo quando cantava o erotismo, ainda assim a frase de Santo Agostinho, "o animal humano fica triste depois do coito", parecerá pairar sobre ela. A dissolução do humano no homem é a clave mais tenebrosa dessa poesia e sua melhor reflexão sobre o mundo. E não é à toa que um dos poemas mais significativo a este respeito seja "A noite dissolve os homens".

Talvez como resultado desse universo pessimista, a poesia de Drummond o mergulhará numa solidão infindável, sem solução, matéria de vários poemas que se seguirão na composição de boa parte de sua obra.

Em José, aparece um poema denominado "A bruxa", que exprime essa condição de seres solitários, que Drummond atribui a si e aos humanos em geral. É como se essa condição fosse um sentimento básico da natureza humana. Mas a coisa é mais complicada, sendo mais um problema da própria relação do homem com o mundo por ele criado.

Neste poema, a relação do poeta com o mundo não é confortável: em meio a milhões de habitantes, ele sente-se só. E este sentimento incômodo de solidão se expressa através de uma bruxa (espécie de borboleta) que se abate contra a luz da casa. Essa movimentação ansiosa não é outra coisa que o desespero do poeta. Talvez um movimento que se traduz numa tentativa de se comunicar. Mas o resultado é o seguinte: "Mas se tento comunicar-me/ o que há é apenas a noite/ e uma espantosa solidão."

E a solidão acompanha o poeta num poema denominado o "O boi". Aqui também estamos vendo o poeta sofrer a solidão em meio ao mundo que o rodeia: "ó solidão do homem na rua!/ entre carros, trens, telefones, / entre gritos, o ermo profundo."

Esta solidão talvez desaparecesse se o amor chegasse, como também no poema "Bruxa", como força redentora: "Se uma tempestade de amor caísse!/ as mãos unidas, a vida salva...".

Drummond faz sempre de suas indagações com o mundo uma indagação sobre o fazer poético. Nesse ponto recorremos a alguns versos do poema "O Lutador": "Lutar com palavras/ é a luta mais vã./ Entanto lutamos/ mal rompe a manhã/ (...)/ O ciclo do dia/ ora se conclui/ e o inútil duelo/ jamais se resolve."

Aqui podemos pensar em uma correspondência direta e de enfrentamento entre poesia e mundo. Há em Drummond não só o sentido da luta pela palavra justa, que aperfeiçoa, edifica e conclui um poema. Mas há também um enfrentamento, uma luta, uma discórdia com o mundo. Claro que o fazer poético é uma luta, por vezes insana, injusta (ele explica no poema: "são muitas, eu pouco"), desoladora. Mas é sob sua égide que o poema vem ao mundo, que o fazer poético se transforma numa arma de combate e entendimento, nesta luta constante entre a busca de um sentido para a vida e a criação da poesia.

O embate do eu do poeta com o mundo não tem fim na poesia de Drummond. Suas angústias, ressentimentos e esperanças se entrelaçam numa vertiginosa luta contra as forças desoladoras do mundo. Essa luta, como dissemos, é a matéria-prima de sua poesia. É a fonte que faz de seus versos, mais do que um simples ajuntamento de proposições, "uma conquista do inexprimível". Mais ainda, não podemos pensar o contrário, um "conhecimento do humano".

Ele quis ver o mundo através da poesia; viu e sua poesia tornou-se, para usar um termo schopenhauriano, essa "vontade de representação" do mundo. Tanto para o filósofo como para o poeta, "a vida nunca é bela, só os quadros da vida são belos, quando o espelho da poesia os ilumina e os reflete."(Schopenhauer)

Em um poema dedicado ao poeta Alphonsus de Guimarães Filho, encontramos alguns versos que se nos apresentam como a síntese perfeita do que pode representar a poesia de Carlos Drummond de Andrade. E com estes versos finalizamos nosso comentário sobre Drummond.

O combate da luz
contra os monstros da sombra:
assim tua poesia
é alvorada e angústia.

Pousa a morte nos ramos
do tronco apendoado
Mas da seiva rebentam
novos, florentes cânticos.

Jardel Dias Cavalcanti
Campinas, 26/11/2002

 

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