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Segunda-feira, 23/12/2002
Todas as paixões desperdiçadas
Eduardo Carvalho

Lula e Fidel em Havana

As paredes de Havana estão descascadas. Os prédios residenciais da cidade, de aproximadamente três andares, transformaram-se em cortiços. Não há, internamente, divisão rígida entre os apartamentos ― famílias se organizam como podem. Ou não podem: e no espaço em que caberia um casal com conforto espremem-se, entre mofo e baratas, famílias com uma dúzia de integrantes. Sem água e sem colchão. Silêncio e privacidade, em Havana, são privilégios impossíveis. A população está preocupada com necessidades essenciais: como, por exemplo, comida.

A porção de alimento oferecida pelo governo não sustenta uma família por uma semana. É preciso comprar o resto, e os mercados de Havana vendem seus produtos em divisas ― ou seja, dólar americano ou a moeda cubana equivalente. A matemática é simples e triste: um dólar custa vinte pesos cubanos; um quilo de carne custa aproximadamente dez dólares; o salário mensal de um médico é de 400 pesos ― ou, convertendo, vinte dólares por mês. É ridículo, mas é assim. Ou, talvez, pior, se considerarmos que um policial havanero recebe 870 pesos por mês, o que é mais do que o dobro do salário de um médico. É desse modo que o governo preserva uma relação aparentemente pacífica entre os turistas e os cubanos: com um policial em cada esquina, literalmente. São eles, os turistas, que sustentam o país. É preciso protege-los e enganá-los, à força.

A relação entre havaneros e turistas é tensa. Gineteros abordam e incomodam turistas na cidade inteira, pelas calçadas e pelos bares, disfarçando simpatia em busca de dinheiro. Fingem amizade, porque, oficialmente, não podem servir como guias. E grudam na vítima desavisada, oferecendo uma variedade curiosa de serviços: restaurantes, drogas, charutos, rum, mulheres, etc. Tudo, claro, anunciado como o melhor negócio da cidade, com um discurso ininterrupto e confiante, de tão repetido. Bobeou e, ops, ele leva sua carteira. É difícil encontrar, sobre toda a superfície terrestre, uma espécie mais inconveniente. Do outro lado, ginetera significa prostituta. A impressão, caminhando por bairros residenciais de Havana, é que quase toda cubana está disposta a oferecer sua sensualidade latina em troca de cinco dólares. A aproximação é, mais uma vez, descarada, alternando entre assobios e olhares, tão forçados quanto constantes. Caminhar por Havana, apreciando a pureza do mar e beleza da arquitetura, poderia ser uma distração deliciosa. É, hoje, porém, uma irritação permanente.

Havana é uma cidade despedaçada e desperdiçada. A não ser por um único pedaço, Havana Vieja, restaurada recentemente e freqüentada quase com exclusividade por turistas e, claro, gineteros de ambos os sexos. Cubanos são proibidos de visitar ilhas e praias do seu próprio país, como Cayo Largo e Varadero (onde, por sinal, a esquerda brasileira, de Lula a Chico Buarque, gosta de se divertir, celebrando o suposto sucesso do regime cubano). Se não forem funcionários de hotéis e restaurantes ― que, aliás, contratam normalmente brancos, apesar da predominância negra em Cuba ―, jamais pisarão nesses ambientes. Havana Vieja é um dos poucos lugares de Cuba em que turistas e cubanos se encontram em plena legalidade. Para azar dos turistas, porque são sempre os gineteros que aparecem nesses ambientes; e, claro, para a sorte dos malandros. E quem recebe o trabalho, depois, é o policial, escalado para impor respeito e separar tipos suspeitos de turistas ingênuos. É difícil, assim, tomar um mojito em paz.

É nesse contexto confuso e complexo que vive, ou tenta viver, Ibrahim Torres, de 33 anos. Ibrahim nasceu e cresceu comunista. Nunca duvidou do sistema que o educou, e pelo qual seu pai arriscou a vida. Se, em Havana, as coisas não estavam excitantes ou entusiasmantes, também não iria estar em nenhum outro lugar do mundo, concluía. E, portanto, é melhor aceitar essa rotina, que, no fim das contas, nem é tão exigente assim: dificilmente um cubano trabalha dois dias seguidos. Todo mundo precisa estar empregado, dentro das estatísticas, e a solução, se não há emprego suficiente, é dividir o existente. Ibrahim distribui cartas, dia sim e dia não, em um turno de quatro horas, e recebe 200 pesos, no fim do mês. O que, na verdade, não o sustenta por duas semanas. Como quase todos os habitantes de Havana, Ibrahim tem um primo que escapuliu para Miami, e que envia 200 dólares anuais para a família pagar as contas. A isso, Ibrahim soma o que recebe da tradução que faz, por baixo do pano, para amigos holandeses, que visitam o país anualmente. Não é muito, mas assim Ibrahim conseguiu acumular uma poupança estratégica, para alguma eventualidade.

Foi por amor, como dizem. E Ibrahim jura que não tinha outro interesse quando decidiu sair de Cuba para morar no Brasil, a não ser se casar com Marina. Conheceram-se através de um amigo em comum. Apaixonaram-se. Ibrahim cuidou do longo processo burocrático, durante dois anos, para conseguir permissão para sair de Cuba ― e nunca mais voltar. Foi, ou, se quiser, veio, para Curitiba. Chegou e, depois de dois meses, Marina chutou-lhe a bunda: estava desconfiada que Ibrahim estivesse com ela apenas para fugir da Ilha. Ibrahim continuou no Brasil durante seis meses, desorientado e deslumbrado. Não acreditava no que via: na distância entre a realidade brasileira e o que ele aprendeu em cartilhas soviéticas sobre o Brasil. Pessoas normais saiam com os amigos, para beber cerveja boa e barata, e comer com fartura. Tinham carro e televisão, torciam para times de futebol, iam ao cinema. E falavam mal do presidente, em alto e bom som, totalmente despreocupadas com a polícia. O Brasil real não era apenas diferente do descrito pelo seu material didático. Era absolutamente diferente de Cuba. Era, enfim, o paraíso. Ou seria Cuba um inferno ― que, dentro dele, era impossível perceber?

Apesar de todas as qualidades do país, e da sua renovada empolgação com a vida, Ibrahim precisou voltar para Cuba, quando a poupança acabou. Podia, com facilidade, empregar-se numa escola de espanhol, mas não conseguia suportar a idéia de, durante toda a sua vida, ficar distante de sua mãe e dos seus irmãos. Precisava revê-los e contar o que viu. Mas sabia que dificilmente conseguiria sair de Cuba novamente; seria, ainda, observado e perseguido, como dissidente em potencial. Voltou, ou, se quiser, foi, mesmo assim ― para nunca mais voltar. Acabou-se a paixão por Marina. E nasceu em Ibrahim um sentimento inesperado e forte, de profundo amor pelo Brasil. É este o impacto que a liberdade provoca em quem nunca a experimentou: a sensação de nascer de novo. Ibrahim descobriu que, durante toda a sua vida, foi preso e enganado. Sua passagem pelo Brasil foi inesquecível e insubstituível. Ibrahim saiu da caverna.

E voltou para ela. Para viver, agora, sozinho, de lembranças alegres e idéias confusas, produto de sua permanência no Brasil. Não consegue mais aceitar o trabalho de carteiro. Seu único ofício é, durante duas semanas ao ano, os serviços de tradução que presta aos amigos holandeses. Não tem dinheiro para beber cerveja a vinte pesos a latinha. Não tem cinema para assistir. Está cansando da programação dos quatro canais de televisão estatais. Não suporta o incansável discurso comunista do Gramma, jornal oficial de Cuba, que filtra e distorce notícias. Não tem amigos para conversar sobre experiências no exterior. Não recebe notícias de amigos estrangeiros, porque o Comitê Revolucionário do quarteirão censura sua correspondência. E não pode reclamar de nada. Não pode, inclusive, comentar sobre o marasmo que o abate, nem mesmo com familiares. A simples imagem de Fidel Castro, no palco ou na televisão, faz com que Ibrahim trema e sue visivelmente. Sua rotina é um tédio insuportável, a ponto de ele confessar para mim: ou enfrenta o Caribe em uma balsa precária ou, em dois anos, explode seus miolos. Só é possível agüentar o inferno quando nunca se esteve fora dele.

Há exatamente dois anos estive com Ibrahim. E, desde então, não recebi nenhuma notícia sua, apesar das cartas que enviei. Pode estar vivendo com tranqüilidade em Miami; pode estar afogado no Mar do Caribe; e pode ter cometido suicídio. Não sei: mas a alternativa mais provável, considerando o estado em que estava quando nos encontramos, é a última. Não havia, para Ibrahim, expectativa de novidade ou esperança de renovação. 2003 seria necessariamente pior do que 2002, porque, com o tempo, seu espírito estava cada vez mais oco e seco, sugado e esmagado pelo regime a que está submetido. Seu chefe, agora, aliás, vem para o Brasil, prestigiar a eleição de Lula para Presidente da República. Lula ainda admira a Revolução Cubana e respeita a ditadura castrista. O Brasil está cheio de expectativas e esperanças, de palavras sedutoras e bonitas, aguardando, mais uma vez, o sucesso inédito de um governo onipotente. E não percebe o perigo dessa confiança. Pagará por isso. Só espero que não custe a liberdade que nos resta.

Eduardo Carvalho
São Paulo, 23/12/2002

 

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