busca | avançada
63387 visitas/dia
2,0 milhão/mês
Sexta-feira, 20/12/2002
Noblesse Oblige
Alexandre Soares Silva

O assunto - uma última vez - é política. Sei muito pouco sobre o assunto, mas tenho que falar. Noblesse oblige.

A política é notavelmente parecida com uma pia. Entre debaixo da pia e repare bem. Ela é ao mesmo tempo enigmática e desinteressante; ela funciona de um modo que você não sabe bem qual é, mas ao mesmo tempo também não quer muito saber. É, por assim dizer, um mistério chato.

Se acontece algum problema nela, você chama um encanador. O encanador explica o problema pra você, sorrindo um pouco da sua ignorância dos tipos de válvulas.

Vá lá, você se esforça e até lê um, dois, três manuais de pia. Mas chega, não é? Só uma criatura obviamente desequilibrada escolheria a pia como hobby, assinaria jornais sobre pias, ou construiria uma biblioteca sobre pias.

Para mim, na juventude, Paulo Francis teve o papel desse encanador, em política e economia. Dizia ele que o estado só faz cretinices quando se mete em economia. Acreditei, porque Paulo Francis era obviamente mais inteligente do que quem dizia o contrário. Um encanador mais limpinho. Conhecia até Matisse.

E até me dei ao trabalho de ler livros de economia e política. Vários. Demasiados. Bastava ter lido, acho, Economia em Uma Única Lição , de Henry Hazzlit. Não há nada mais sensato. Depois dele, todos os outros livros que li de economia me pareceram posfácios. Gradualmente parei com esse hábito sinistro de ler sobre economia ou política. O chatíssimo "Depoimento", de Carlos Lacerda (Ed. Nova Fronteira), foi trocado num sebo (juntamente com "La Cría de Peces de Acuario - Manual Práctico") por um livro de histórias do Padre Brown.

Nunca teria dito nada, absolutamente nada, sobre política ou economia. Por mim mesmo, não. Teria me conformado em apontar, vagamente, para o livro de Hazzlit na estante, se perguntado sobre o assunto. E pouco teria me importado com o fato de o governo Lula seguir uma ideologia que eu e Hazzlit achamos sumamente idiota.

Mas aconteceu uma coisa. Depois dessa coisa, tive que falar. Tive que reclamar. Tive que tentar ser oposição. É chato. Ser oposição é chato - algo que só pode agradar a almas medíocres. Mas tive que fazer isso, compreendam.

(Pausa)

Vocês se lembram dessa coisa.

Eis a coisa: uma atriz (Regina Duarte) apareceu na tevê, pouco antes das eleições, para dizer que tinha medo de Lula. Lula respondeu que ela estava velha e tinha medo da concorrência das atrizes mais jovens.

Agora - se uma senhora gordinha estivesse hesitando em entrar numa lotação cheia, e um office-boy dissesse: "Óia a véia com medo da concorrência das mina", os amigos do office-boy ririam e o julgariam muito espirituoso (se conhecessem a palavra). Me horroriza que o país inteiro tenha se reduzido ao nível mental dessa lotação cheia, que é o que aconteceu quando todos riram da frase de Lula. Um presidente ri de uma mulher e diz que ela está velha; o país acha engraçado.

Desculpem, mas trata-se de um presidente canalha, se diz isso, e de um país canalha, se ri disso.

Pouco me importa que o governo Lula seja de esquerda; que ao menos não seja canalha. É verdade que o economista austríaco Friedrich Hayek já tinha dito, em O Caminho da Servidão (1944), que os governos de esquerda favorecem necessariamente a subida dos canalhas ao poder. Esse episódio é um leve, muito leve, sinal disso.

Sei que é leve. Sei que Lula não chutou Regina Duarte escada abaixo; ele simplesmente a chamou de velha. E todo mundo riu.

Quem faz uma cafajestada dessas é capaz de qualquer coisa - julgamentos coletivos, paredão, goulags - qualquer coisa.


Lula

Descendo do Banquinho
Pronto, minha indignação passou. Mas sejam justos: conseguem imaginar Fernando Henrique Cardoso fazendo a mesma coisa com (digamos) Lucélia Santos?


Feliz Natal e Feliz Vida
Com este texto encerro um ano e meio de coluna aqui no Digestivo.

Só tenho boas lembranças. Nesse ano e meio fui lido por gente muito inteligente, invariavelmente polida na concordância ou na discordância, e por gente muito burra, invariavelmente truculenta e séria. Em todos os casos me diverti.

A quem me odeia, me ama, ou cultiva uma apaixonada indiferença a mim: conheça o meu blog, o Alexandre Soares Silva, que comecei agora e onde continuarei a escrever. Aliás continuarei a escrever aqui, ocasionalmente - só para irritar algumas pessoas. Meu email está lá no blog. Feliz Natal e Feliz Vida.

Alexandre Soares Silva
São Paulo, 20/12/2002

 

busca | avançada
63387 visitas/dia
2,0 milhão/mês