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Quinta-feira, 26/12/2002
Espectro Natalino
Héber Sales

Que momento extraordinário é o Natal! Nesta data, enchemo-nos de generosidade, e, na medida de cada um, gastamos a não mais poder, congratulando-nos. A boa vontade devida a coabitantes, estendemos em círculo mais amplo, alcançando vizinhos outrora invisíveis, parentes esquecidos, servidores domésticos eventuais, e até o colega antipático agora amigo secreto. Todos estes recebem um agrado - adrede escolhido, com critérios traduzindo, em moeda e tempo, o valor das relações...

(Bem, esta face cartesiana da fisiologia social, o cálculo do interesse mútuo, em que pese explicar muitos gestos caridosos, não nos importa aqui e agora, pois tentamos uma clave emotiva nesta ode ao espírito de Natal. Esconjuremos a insinuação azeda e sigamos; tentemos frisar o caráter piedoso da época).

Porque é Natal, ocorre uma imensa redenção; multiplicam-se as expiações. O turista insone, na ressaca da orgia noturna com garotas menores, abala para o correio postando figuras do menino Jesus; o empresário divide-se entre o azáfama do balanço fraudulento e a promessa feita a Virgem Maria durante de uma crise superada: a doação de brinquedos a moleques carentes. O antagonista escreve uma benção para o desafeto que obra no departamento rival; o beligerante chefe de estado reza contrito na catedral, ouvindo do sumo pontífice apelo à paz mundial; e o sacerdote mesquinho lembra, na paróquia, a infinita graça divina.

Por que é Natal, o perdão alcança a muitos. Agracia maridos que procuram nostálgicos os lares abandonados; reúne, junto ao pai moribundo, os irmãos, ora arrependidos de uma disputa antiga; oficializa-se no indulto de Natal - a liberdade temporária facultada a criminosos temerários, que, após o feriado sagrado, retomam as suas penas.

Por que é Natal, a devoção ao próximo desdobra-se em atos eloqüentes. Artistas milionários arrecadam quilos nas bilheterias; campanhas de doações recolhem peças algo rotas de guarda-roupas bem sortidos; estudantes de boa família visitam, em excursão didática, crianças e velhos enjeitados; e o guri iletrado ganha uma Bíblia belíssima.

Por que é Natal...

(Que droga! Não logro destacar, imaculada, a bondade dos homens na comunhão natalina! Um traço egoísta avulta em cada personagem virtuoso que me ocorre, apequenando-o - o mensageiro do menino Jesus prostitui meninas; o benfeitor da periferia desassistida é um sonegador contumaz; o pai saudoso abandonou os filhos à miséria; os irmãos chorosos adoeceram o velho com suas brigas; o ladrão apegado a sua família mutilou tantas outras; os ricos parecem solícitos repartindo apenas seu lixo.

Soa-me episódica, essa prodigalidade toda; uma compensação insuficiente para a indiferença tônica...

Quedo-me angustiado: será que nesta crônica persegui quixotescamente a pureza humana? Tentava pintar um belo retrato, mas assombrou-me um espectro: evocavam, os atos benévolos de todos, uma algaravia crescente de mensagens surdas, repetições de gestos aprendidos para galvanizar uma precária solidariedade, de resto tão vital, entre convizinhos açulados pela ambição da espécie...

Desespero-me: em que dia santo decidiremos nos salvar de uma vez por todas da opressão mútua?)

Héber Sales
Salvador, 26/12/2002

 

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