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Segunda-feira, 6/1/2003
A Cura
Héber Sales

Neste palco,
sua cara vida
revela-se um script
na obra de autor
misterioso.

Seus desejos saracoteiam
intempestivos,
e mal arranham
a superfície do papel,
onde o ato
de duração imprevista
caminha para o fim certo -
para ele errado,
que não quer apear
deste tablado.

Ensaia tantas vezes
um jeito de ser feliz,
à espera do seu modo
de permanecer.


De nascença, sou cristão. Por muito tempo, de confissão em confissão, descansei o fardo de herança original: a culpa. Era condenado, errabundo num exílio vergonhoso. Deixara um éden onde nunca tinha estado, mas que reconhecia quando no peito túmido uma dor subia a garganta num rebojo: "vou-me embora pra Pasárgada!" Rezava assim, por vida melhor, muitas vezes; outras tantas, pedia é perdão - depois que em miragens o paraíso roçava meus sentidos todos, confundindo-os com visões que cheiravam a tato de gosto bom. Numa e noutra, a agonia trocada, a flagelos, por um fio de esperança; eu renovava as promessas, e então tudo podia dar certo.

Por um descuido, formei-me profano, no culto à razão e à ciência positiva. Cresci na outra metade dum século sem fim, de datação inverossímil para a gigantesca obra da época. As evidências acumulavam-se, e a ordem das coisas não poderia mais se esconder no não-ser. O iluminado momento moderno expulsava espantos, e eu, aluno aplicado, esperava o elixir da vida eterna, o qual surgiria, embalado e bem marcado, no final de uma linha de montagem qualquer.

Mas os anos de luzes se foram, e, mesmo com os muro derribados, a desgraça foi tanta miséria afogando a minha fé, que um pânico tomou-me e aos outros. À muita sombra de coisas que não vieram, nossos fantasmas dançaram o horror. De nada adiantou que homens famanazes fossem defender a nossa liberdade. Cada inimigo abatido fazia explodir a angústia do fim do mundo, porque a dor do outro era sentida dentro, como se fôssemos em cada um toda a humanidade canibalizando-se. Nenhum discurso soava certo, e toda força justificava-se tão somente na luta desesperada pelos restolhos da terra agonizante. Dançávamos todos um imenso ritual suicida... É que a vida tornara-se vã e sem sentido depois que a natureza, aparentemente dominada, conspirou seguidas vezes contra ela. O progresso havia nos lançado numa grande separação (tantas conquistas democratizaram a cobiça; o medo do outro espalhou o ódio até o parente mais próximo; e eu detestava a mim mesmo na busca da eficiência improvável), e não podíamos tocar nenhum consolo. A luz no fim do túnel revelara-se um filme monótono, e a realidade, tropeços na escuridão.

Desesperançado, assumi uma ordem alternativa na comunidade remota. A senha era o voto de silêncio - tomado por um superior que parecia falar as regras mínimas a contragosto. No dia a dia, para aprender, eu apenas seguia os passos dos mais destros naquele desafio de viver sem comprar ou vender. E cuidávamos de tudo, do algodão e do seu tecido, do milho e da sua farinha, da cabra e do seu queijo, da cana e do seu açúcar, do rio salobro e do seu tempero, com instrumentos mínimos, inocentes, que não perturbavam a terra em seu equilíbrio antigo. Custava, este imenso trabalho, todas as horas claras do dia, desde quando o passaredo as surpreendia até depois das galinhas se empoleirarem - o sol despedia-se esquecido por nós que pisávamos o desjejum na ânsia do sono revigorante. Os dias, contados pelas estações, ignoravam os acontecimentos históricos de todas as eras. O isolamento era completo, e vivíamos sem notícias das terras civilizadas.

Havia ali no entanto, a tradição de certos volumes vetustos, os únicos vocábulos permitidos, dispostos em aforismos de sentido fugidio, mas cultuados. Eu desafiava seus segredos em noites mal dormidas à luz de lamparinas. Fui entendendo mais com o tempo - provavelmente de um modo bastante peculiar, porque teimava no íntimo com aquela vida sisuda. Nos códigos do guia da comunidade, eu lia uma outra idéia; e nos dias seguintes, quando me iniciava numa nova arte, ouvi um outro dizer "não!" Era tarde todavia. Eu fora tomado pela ânsia de um outro olhar, o meu único; e a beleza do artefato que fiz verem, em muitos deles despertou atrevimento, e saíram pelo mundo em espetáculos.

Malbaratada aventura aquela vida de ermitão. Rendera-me contudo uma boa história - era o que imaginava... Pus-me a escrever a epopéia. Ordenava as palavras tentando fazer sentido da minha experiência nas franjas da humanidade, muito além do vocabulário socializador, entre o silêncio e a expressão extravagante. Não tinha muito sucesso porém. Meus leitores recitavam com embargo crescente na voz, espantados. Para mim, um som perseguia as linhas forjando versos numa batida boa de juntar imagens grávidas de significado novo; para eles, atrapalhava-lhes o cálculo soando como prova mental. Não funcionou. Fui tomado por esnobe ou maluco - ao ponto de eu mesmo duvidar de minha sanidade. Terminei por desistir daquela obra: minha aventura não podia ser devidamente esclarecida, mas apenas traduzida num barulhinho gostoso provocando sugestões mentais que exauriam toda a minha ansiedade.

Passei dias entre a frustração e mais uma esperança...

Por fim decidi, ainda acossado por dúvidas, tratar meus assombros assim, escrevendo sinestesias, e larguei a explicação nas mãos de um homem mais bem aparelhado que um dia talvez surgirá.

Foi deste modo, quase incomunicável, que a vida me surpreendeu no alfabeto com as próprias armas da confusão, balaios de nomes com que apontar os desejos. Agora viro noites sem fome nem dor nem sono, refinando, num transe incontável, as frases de dentro dos sedimentos das convenções: torno-me o caos na faina sagrada do Criador, e então toco a eternidade.

Héber Sales
Salvador, 6/1/2003

 

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