busca | avançada
133 mil/dia
2,0 milhão/mês
Quinta-feira, 9/1/2003
Apesar da Barra, o Rio continua lindo
Adriana Baggio

Passei o Ano Novo no Rio de Janeiro, não porque quisesse muito, mas porque calhou de ter hospedagem por lá. O Rio é maravilhoso, não tem como negar. Mesmo com traficantes, engarrafamento, praia lotada, o Rio é o máximo. Só não entendo porque esse povo insiste em achar a Barra da Tijuca um local nobre para se viver.

A Barra da Tijuca me lembra um balneário provinciano, tipo aqueles encontrados nos estados do sul do país. Até Camboriú, em Santa Catarina, é mais cosmopolita, mais moderno que a Barra da Tijuca. No visual eles até se parecem um pouco: um paredão de prédios, um calçadão e a praia lotada de gringos e farofeiros.

Os moradores da Barra acreditam que são uma espécie de privilegiados, que moram em uma Shangri-lá após o túnel. Voltar para o outro lado é como entrar em contato com as mazelas do Rio de Janeiro. Por ser longe, a Barra só encoraja os que têm carro. Assim, ela fica "protegida", distante. Seus moradores circulam por ali, já que a Barra é auto-suficiente. Por ter se tornado essa bolha, a Barra se consome em uma autofagocitose que impede o arejar das idéias. É como o ar viciado de um ônibus lotado: não circula, não renova, impede o desenvolvimento.

O sistema de valores humanos vigentes na Barra não tem nada de humano: são os prédios, os carros, os barcos, as lojas do shopping. Ah, os shoppings... são as praças da Barra da Tijuca, onde as mães levam seus filhos para não ter que aturá-los. As crianças compram, se empanturram de bigmacs, ficam como autistas em jogos eletrônicos, têm a mente oca invadida por idéias ocas de filmes ocos.

No entanto, o que mais me intriga é o grau de provincianismo dos moradores da Barra, que afinal de contas, fica em uma das cidades mais famosas do mundo, que rescende a história, cultura, vanguarda. Os moradores da Barra gostam de dizer que são vizinhos de artistas de novela, jogadores de futebol, socialites. Um dos roteiros turísticos mais famosos da Barra é passar em frente aos condomínios e casas dos famosos. Os moradores, orgulhosos, apontam: aqui mora fulano, aqui mora sicrano, aqui a Globo gravou tal novela.

Não que a Barra seja feia: ela é como uma moça bonita, mas sem gosto, sem espírito, vazia, um pouco brega e extremamente limitada. O pecado não é morar na Barra, mas achar que o mundo se resume àquele pedaço de terra dantes habitado somente pelos motéis. Os prédios das décadas de 50 e 60 em Ipanema, Copacabana e Laranjeiras têm muito mais charme do que os luxuosos edifícios da Barra. Mil vezes a Urca, com suas ruazinhas ao pé do morro e casas antigas, o centro da cidade, os edifícios da época do Império. Se for para ver prédios luxuosos junto à água, vá para a Lagoa Rodrigo de Freitas, que pelo menos tem mais personalidade.

A Barra tornou-se um gueto onde as pessoas sentem-se mais seguras, distantes dos problemas da cidade. Talvez por isso mesmo ela seja esterilizada, pasteurizada. Na Barra não há espaço para o autêntico, o criativo. A própria cultura já chega enlatada, fácil de ser consumida e digerida. Mas toda essa facilidade, essa segurança e esse conforto têm um preço. E é o preço pago pelos moradores da Barra que dá a dimensão de seu valor enquanto pessoas.

Seria uma hipocrisia dizer que passar alguns dias na Barra tenha sido um tormento. Mas atravessar aquele túnel me fez ver um Rio de Janeiro que eu não conhecia, e a comparação é inevitável. É um reflexo de várias tendências convergentes. A falta de segurança e de estrutura nas grandes cidades provoca a formação desses guetos. Quanto mais a sociedade ignora os problemas sociais, mais acuada fica por eles. No entanto, fechar-se para a cidade provoca um fechar-se para a riqueza da cultura da cidade, para as novidades, para as tendências naturais. Os guetos passam a aceitar somente o que já venha pronto para o consumo, esterilizado, pasteurizado. E aí entra uma outra tendência, que é a de americanização da cultura. Os americanos são especialistas em embalar e distribuir cultura pronta para o consumo, como um fast food. É fácil e relativamente barato de consumir, não requer esforço e tem uma aparência de qualidade. Por conseqüência disso, não se exercita o fazer, o pensar, o participar, não se arejam as idéias, não se produz conhecimento, arte, cultura. Portanto, é preciso comprar e consumir cultura importada, já pronta.

É claro que tudo isso não é privilégio da Barra. O que impressiona é isso acontecer em uma cidade como o Rio, cuja convivência entre as diferenças produziu e ainda produz algo do que há de melhor em termos de cultura no Brasil. A Barra é um exemplo do que pode acontecer ao país todo se a sociedade se acuar em seus guetos seguros mas insípidos. A personalidade da cidade precisa de espaço livre, de ruas e mentes abertas para crescer, enriquecer e se disseminar. A cidade encerrada em shoppings e condomínios não respira, não areja, não se renova. E culturalmente, fica cada vez mais pobre. Como a vida sem oxigênio.

Adriana Baggio
Curitiba, 9/1/2003

 

busca | avançada
133 mil/dia
2,0 milhão/mês