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Quinta-feira, 9/1/2003
Orson Welles
Maurício Dias

legenda

Pra começar, referir-se a Orson Welles como cineasta é extremamente reducionista. Ele foi também um homem de teatro, de rádio, e um ator shakesperiano - embora talvez não fosse um grande ator.

É célebre a comoção que causou em 1938, ao transmitir em seu programa de rádio semanal uma adaptação do romance de H.G. Wells "A Guerra Dos Mundos". Narrado de forma realista, o show fez muita gente nos EUA acreditar que Nova York estava sendo invadida por alienígenas. Orson tinha então vinte e três anos, e uma já longa carreira teatral. Aos vinte e cinco dirigiria Cidadão Kane.

Citizen Kane (1941) é apontado por muitos críticos como sendo o melhor filme de todos os tempos. Ao meu ver há um bocado de exagero nesta afirmação. Kane não é nem o melhor filme de Welles - que é, de longe, A Marca da Maldade (A Touch of Evil), de 1958 - quanto mais o melhor do mundo.

É claro que o filme é altamente inovador, e revolucionou a narrativa cinematográfica. Mas inovador não é necessariamente bom. Embora Kane seja bom, e muito, é mais inovador do que bom. Em arte, Duschamp, Pollock e Warhol - este último inclusive no cinema - foram inovadores, e isto não significa que foram bons (embora muita gente ache que sim). Picasso, após a década de 50, quando via manchas de tinta no chão de seu ateliê, comentava em tom de deboche: "- Ih, fiz um Pollock!"

Mas o assunto é cinema, mais precisamente Cidadão Kane. Gastaríamos um livro falando das inovações do filme. Assim como poderíamos falar horas das inovações dos filmes do americano D.W. Griffith, o grande inovador da narrativa cinematográfica. No entanto, tirando os estudantes de cinema, quem agüenta os filmes de Griffith hoje em dia? É claro que os recursos técnicos precários da época são uma boa desculpa para Griffith. Mas, em contrapartida, muitos críticos sustentam que apenas na época do filme mudo se fazia um cinema puro, pois era a imagem que conduzia a ação, e não os diálogos. Esta discussão é irrelevante, a única contribuição do cinema às artes é a montagem - a edição -, o resto todo vem da pintura e do teatro. E outros filmes mudos, os de Chaplin, Buster Keaton, muitos alemães expressionistas e Eisenstein ainda são bem palatáveis hoje em dia - especialmente os dois primeiros, por serem cômicos (e nunca se julga as comédias com o mesmo rigor que se julga o drama). Mas Griffith, não.

E sobre Cidadão Kane, e sua celebração como o número 1 do cinema, podemos dizer que muitos filmes do cinemão americano dos anos 50 são mais interessantes que ele: Crepúsculo dos Deuses (Sunset Boulevard) e A Montanha dos Sete Abutres (The Big Carnival), ambos de Billy Wilder; Rastros de Ódio (The Searchers, J. Ford), Janela Indiscreta (Rear Window), Um Corpo que Cai (Vertigo) e Intriga Internacional (North by Northwest), de Hitchcock; Cantando na Chuva (Singnin' In The Rain, Stanley Donen), A Embriaguez do Sucesso (The Sweet Smell of Sucess, de Alexander Mackendrick), Vidas Amargas (East of Eden, de Kazan). Fora A Marca da Maldade, do próprio Welles. Isso só considerando os anos 50 e os EUA. Se formos pro Japão, Suécia, Itália, começaremos a colocar a obra-prima de Welles em seu devido lugar. De qualquer maneira, Kane é um filme importantíssimo.

A câmera se aproxima de uma mansão, chega ao quarto de um velho moribundo. Ouvimos sua última palavra em seu leito de morte, Rosebud - seja isto o que for. Começa então um falso documentário, uma paródia extremamente bem feita da série cinematográfica March of Time, em que Welles chegou a fazer cortes de som propositalmente errados em algumas cenas para que o som ficasse "truncado" como os documentários de então. No "falso-documentário" de Kane - coisa que Welles voltaria a fazer em F for Fake, em 1975, ou seja, mais de trinta anos depois! - se conta uma biografia resumida de um magnata das comunicações. A partir disso, um repórter sai para descobrir quem foi, de verdade, aquele homem e o que significa Rosebud - embora quando ele tenha dito tal palavra não houvesse ninguém ali para escutar - confira no filme!

Aí começa uma longa investigação, conduzida basicamente na primeira pessoa - embora não de forma tão radical quanto seria feito em 1947 pelo ator e cineasta Robert Montgomery em sua adaptação do livro de Raymond Chandler A Dama Do Lago (The Lady In The Lake, 1947) - este filme é todo em câmera subjetiva, o que vemos é sempre a visão do personagem que conduz a ação. O ator que interpreta este personagem só aparece quando se vê no espelho - eis um belo exemplo de filme que é inovador e não é bom. Aliás, Orson tinha planos parecidos quando chegou em Hollywood em 1939. Pretendia adaptar o livro de Joseph Conrad, The Heart Of Darkness, fazendo a câmera ser a visão do personagem principal, que ficava quase o tempo todo pilotando um barco. Este projeto foi adiado em prol de Kane, e acabou nunca se realizando.

Ficamos sabendo da infância de Kane através das páginas do diário de seu tutor, que o acompanhou por parte da infância à juventude. Há uma brilhante passagem temporal, quando numa cena, que se passa ainda na infância de Kane, seu tutor ergue um copo e brinda: "- Feliz natal..." Corta-se para a cena seguinte, onde vemos o mesmo tutor quinze anos mais velho, continuando o mesmo brinde de anos atrás: "... e um próspero ano-novo!" É o mesmo princípio da cena que Kubrick mostraria ao mundo em 2001-Uma Odisséia No Espaço, quase trinta anos depois de Welles: o osso jogado para o alto se transforma em nave, num salto espaço-temporal de milhares de anos. Só que Welles, que na origem era ator e homem de rádio (embora tenha estudado pintura no Chicago Art Institute de 1931 a 1933), resolve-a pela palavra. Kubrick, que começou como fotógrafo para revistas, pela imagem.

Mais à frente, enquanto ouve-se a conversa de Kane com um dos empregados do seu jornal, vê-se numa parede uma foto dos que são os maiores jornalistas do jornal rival. Há uma trucagem (todas as trucagens do filme são extremamente bem feitas pra época) e vemos que aqueles senhores estão agora ali em carne e osso, sentados gaiatamente para reproduzir a mesma pose da foto na parede - só que agora todos sob o comando de Kane. Imediatamente a seguir, Kane dá um show de fanfarronice ao introduzir no salão um coral de dançarinas e um cantor de vaudeville para tecer loas a ele mesmo, Kane. Enquanto isso, todos os empregados parecem adorar tudo que ele faz, especialmente o puxa-saco Bernstein (interpretado por Everett Sloane, que também trabalharia com Welles em A Dama De Shanghai - The Lady From Shanghai, 1946 -, e algum tempo depois, cometeria suicídio.). Não há um contraponto crítico, um grilo falante para minimizar o ego de Kane - que bem poderia ser o personagem Jed (Jebediah) Leland, interpretado por Joseph Cotten; mas este só se rebela contra Kane bem mais tarde.

E a falta de senso crítico sobre o enorme ego de Kane é reflexo da falta de senso crítico sobre o enorme ego de Welles, que com apenas 23 anos, chegou como um rei em Hollywood, com um contrato de liberdade artística total que despertou muitos ciúmes e ressentimentos na comunidade cinematográfica já ali estabelecida - ninguém tinha um contrato igual. No filme, aliás, Welles parece sempre estar encantado com seu brinquedo novo - a câmera -, como se pensasse o tempo todo: "- O que podemos fazer de novo agora?" Tudo isso fruto da total inexperiência de Welles com esta mídia - a qual ele sempre admitiu abertamente. Antes de rodar Kane, passou um mês seguido assistindo a No Tempo Das Diligências (Stagecoach, 1939), de John Ford, na companhia de técnicos e gente do cinema, e perguntando-lhes como tal e tal cenas tinham sido feitas. Em Kane, Welles teve também a grande sorte de contar com a fotografia expressionista de Gregg Toland, que é o veículo perfeito para cenas com grande profundidade de campo, tomadas fora dos padrões - muitas vezes mostrando o teto, o que não era comum na época.

Aliás, após assistir ao filme, o que fica são basicamente as muitas metáforas visuais: no início do filme, vemos a neve que cai naquela bola de água que serve de enfeite de natal. Mais tarde vamos relacioná-la com a neve da infância de Kane. E como a bola de água cai e se quebra, sabemos que aquele passado está irremediavelmente perdido.

No entanto, se formos julgar a dramaticidade, há sérias críticas a se fazer. A seqüência em que Kane, já homem maduro, conhece uma jovem meio tola que fica rindo dele, e acaba se envolvendo com ela é bastante incoerente - um homem poderosíssimo fazendo teatro de sombras chinês para agradar uma mulher de vinte e dois anos é implausível. Falta credibilidade também à tentativa de Kane de transformá-la, anos depois, em cantora lírica. E à irritação de Kane com seu amigo Leland, quando este critica ferozmente este mesmo espetáculo lírico. Assim como a cena final, quando se descobre o que era Rosebud, é francamente psicologia de botequim. E claro que isso é apenas minha opinião - e eu não sou ninguém para julgar Welles. Então... vamos falar agora de outros aspectos de Kane.

O filme era baseado na vida do magnata das comunicações William Randolph Hearst, a quem o roteirista do filme, Herman J. Mankiewicz (irmão de Joseph L. Mankiewicz, que foi diretor de muitos filmes, entre eles A Malvada - All About Eve, 1950.) conhecia pessoalmente. Só que, usando a ótima frase de Ruy Castro, em seu Saudades do Século XX, "Hearst cometia a indelicadeza de ainda estar vivo... (quando o filme foi lançado.)". Evidentemente, não gostou nada do que viu. E, quando o dono de vinte e oito jornais, catorze revistas e oito estações de rádio não gosta de algo que você tenha feito, bem... aí você tem um baita problema.

Kane foi bombardeado pela imprensa - não só pelos jornais de Hearst, mas inclusive pelos seus concorrentes - todos temiam o que poderia vir a ser publicado contra eles caso viessem a elogiar ao filme. A distribuição foi feita cheia de temor, e Kane não foi exibido por todo o interior dos EUA. Ninguém, a não ser Welles, tinha disposição para encarar um magnata. Curiosidade: Orson tirou o termo "Rosebud", do apelido particular que H.R. Hearst dava ao clitóris de sua amante.

Apesar da campanha contra, o filme concorreu a nove Oscars, entre eles filme direção e ator (Welles), e ganhou o de melhor roteiro original para Orson Welles e Herman J. Mankiewicz.

Se bem que em 1971 a jornalista e crítica de cinema Pauline Kael demonstrou que o roteiro do filme teria sido quase todo ele escrito apenas por Herman J. Mankiewicz, tendo Welles tido uma colaboração mínima. Assim, seu nome constaria como roteirista apenas para que ele fosse considerado autor completo do filme - diretor, roteirista, ator. O desrespeito pela profissão de roteirista sempre foi comum no cinema, assim como a apropriação indébita de idéias. O próprio Welles sentiria isso na carne ao ter um argumento seu roubado por ninguém menos que Charles Chaplin, que a partir desta idéia fez Monsieur Verdoux (1947).

Bem, autoria à parte, o fato é que Kane prejudicou imensamente a muito promissora carreira de Welles - onde já se viu atacar tão diretamente um homem tão poderoso? Levando em conta a falta de preocupação de Welles em ser sutil, se o filme fosse feito no Brasil atual, poderia se chamar "o monstro Marinho". Voltando às artes plásticas, seria como se um pintor renascentista resolvesse esculhambar a Igreja abertamente em suas obras: o mercado se fecharia a ele - além do risco de ir-se para a fogueira. Bem, Leonardo Da Vinci não era dos mais católicos, e isso pode ser visto em suas obras - para quem conhece simbolismo religioso. Mas era feito de forma muito, muito sutil. De qualquer modo, Leonardo nunca foi um artista tão requisitado pelo Vaticano quanto, digamos, Michelângelo - que também teve seus problemas com o papa Júlio II - e aí vale a pena ver o filme Agonia e Êxtase, de Carol Reed, com Charlton Heston.

Mas Welles afrontou abertamente o sistema, e foi jogado aos leões. Assim que concluiu as filmagens de Soberba (The Magnificent Ambersons, 1942), foi mandado aqui para o Brasil, para fazer um filme de boa-vizinhança - assim como Disney, que fez por isso Alô, Amigos (1943) - na época da Segunda Guerra, quando o governo americano temia que o governo facistóide de Vargas se aliasse às potências do Eixo. O filme, só terminado após a morte de Welles (ele morreria em 1985), seria o episódico É Tudo Verdade!

Enquanto Welles filmava e se embebedava no Rio de Janeiro - não necessariamente nessa ordem - , Soberba era mutilado sem o seu conhecimento na sala de edição em Hollywood. Muito do que Welles filmou foi descartado e se perdeu pra sempre. O filme foi exibido, mas estava completamente diferente do que Welles pretendia, e não havia nada que ele pudesse fazer. Jamais se recuperaria do golpe de seu filme - aquele que ele considerou ter sido seu melhor produto - ter sido mutilado. Há muito mais a falar sobre os filmes de Welles, Othello, O Processo, mas vou ficando por aqui. Aos que quiserem saber mais, vale muito à pena ler o ótimo Este É Orson Welles, coletânea de entrevistas cedidas pelo mestre a Peter Bogdanovitch, publicado pela Ed. Globo.

Maurício Dias
Rio de Janeiro, 9/1/2003

 

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