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Sexta-feira, 10/1/2003
Não Importa
Alessandro Silva

Meu nome não interessa. Não há dias sem tormento por aqui, não há descanso diante das horas idas. Às vezes vou para o banheiro e fumo um cigarro; também lá escrevo alguns poemas. Não saem grande coisa, mas isso não importa.

Sou um empregado e onde trabalho não importa, pois tudo dá no mesmo. Adiante, para as paragens de mato onde um rio envenenado trafega, podemos enxergar a fábrica. Lá, o barulho das prensas é ensurdecedor.

Não há barulho ensurdecedor nos escritórios. Conversação, capítulos de telenovela, notícias e gols de placa. Mas não importa, estou esperando.

Além das escapadas para o banheiro, também há o horário de almoço e o fim de tarde, onde devo dirigir-me para a fábrica e fazer coisas que me mandam.

Fico apreensivo quando se aproxima o fim de tarde, porque posso levar algum poema comigo. Caminhando entre as carretas podemos respirar a fuligem e até nos emocionarmos um pouco, por que não? Nesse momento, recito um pouco para mim. Quando estou cansado, paro diante das vigas.

Quando chega o fim de tarde, corro para abraçá-lo e me desanimo porque o crepúsculo não se comunica mais. Depois entro no ônibus e observo com a cabeça pensa na janela os operários chutando-se e cuspindo-se. Evito a idéia da condicional. Afinal, é um trabalho e não uma pena. Mas, o que importa?

Quando desembarco, procuro um bar para ler. Desço em qualquer estação, não faz diferença.

Vejo um sujeito quase livre nessa estória e isso me perturba como um câncer não é mesmo? Estou vendo com seus olhos, mas apenas o suficiente, apenas o suficiente.

Certo dia tive um estalo. E se eu tentasse viver um pouco? Mais ou menos igual ao herói? Mas e se todos igualmente fossem silenciosos e todos tivessem seus objetivos e todos fossem sorrateiros?

Caminhando pelos arredores de uma estação de metrô, descobri as leis da dinâmica.

Haviam muitos caras que estudavam, mas iam para os bares. Um dia encontrei com um sujeito derrotista. Sua família não era pobre, mas ele queria ser rico, inacreditavelmente rico. Eu estava bebendo no balcão; mas não estava lendo. Professores que bebem para dar aulas e alunos que bebem para estudar discutiam. Uma sexta-feira passada dos quarenta apodrecia entre a umidade do balcão e a autoridade da sujeira. Falavam sobre música, mentiam e troçavam Pensei num peão de fábrica que eu havia convidado para beber e que no último momento furou. Não importa.

O cara derrotista estava alterado e bateu boca com um professor gordo e de pele parda. O professor disse "escravidão" e eu prestei atenção. Não estava totalmente bêbado. O cara que era derrotista - e cujo epíteto era "alemão" - acotovelou-me no baço e lançou as pestanas na direção do gordo:

- Veja só isso! Veja só isso!

Soltei-me um pouco e disse ao professor, olhando bem nos seus olhos para humilhá-lo:

- Queira desculpar-me, meu caro, mas você está enganado. A mesma ignorância que presidia a crença do escravo presidia a crença do patrão.

Não importa, eu queria ofendê-lo. Não estava certo do que dizia. De qualquer forma o professor zangou-se com as troças dos outros. A princípio houve um silêncio, mas depois concluíram que eu era um sábio e deram-me valor e estouraram em piadas. Não importa se sou um sábio. O alemão me pegou pelo braço:

- Esse é o homem, esse é o homem.

Os outros apostaram sua sorte.

- Bem, o que eu sou? Não importa, não tem importância.

Eles dissimulam-se muito rápido e caem novamente no riso. Por enquanto eu era do contra e isso era suficiente, afinal tudo é muito suficiente não é mesmo?

Agredimos o verbo e solapamos a comunicação durante três horas a fio, até que houve a austera intervenção do alemão com aquelas coisas de defender e de afirmar-se e de falar de violeiros e pagodeiros que cantam de mulheres, de coca-cola e que vão embora e que não agüentam mais. Bêbado, o alemão assassinaria cento e setenta milhões de frangos d'água desses que chamamos genericamente de "homens" em nome de uma cartilha comunista. Espumava.

Não importa. Eu só quero ficar aqui, bebendo, coaxando, singrando, babando e sonhando. A namorada do alemão esperava por ele e ele tinha que dirigir. Ele disse:

- Vai ser foda. Ela vai encher o saco - e seu sorriso despencou até as suas solas.

Dali, depois das dez seriam onze - se não me falha a rapacidade do cálculo trigonométrico - e depois a noite despencaria na prostituição e no vício da meia-noite. Eu tinha que torrar a grana e obter uma desgraçada.

Caminhando pelas ruas da estação, vi crianças cheirando sua cola e prostitutas gingando a sua ginga. Fui para um prédio esclerosado onde se reúne um monte de velhos desgraçados e alcoólatras em volta do jogo. Cartas, xadrez e sinuca. No primeiro andar, dez mesas de bilhar e um bar faziam a melancólica ruína de uns vinte mortais. No elevador, comigo tinha desembocado um traste de mulher barriguda apertada no couro sintético, bela como uma senhora que conserva seu penteado - e o conserva em seu direito, notem bem. - Apenas havia olhado. A curiosidade é parte do protocolo.

No bar, pedi um martini. Meu estômago estava desesperado. Era como se tivesse engolido sarapatel com pinga de alambique. Eu olhava para as mesas. Um idiota a meu lado ficava comentando as partidas. Havia um jogador nervoso que tentava destruir as bolas dando-lhes tacadas estúpidas. Depois de espocar algumas em suas devidas caçapas, entusiasmou-se, tornou-se arrogante e perdeu três em seguida. A vaqueira conversava com o barba, o sócio da espelunca. Sujeito sacana que traça até lixeira. O idiota a meu lado tentou me explicar umas coisas; mas não gosto de explicações. Suas palavras chegavam como estampidos amarfanhados e silenciosos, como algo a que não se deve dar sentido. Não importa, eu queria o jabá. Ela colou as tetas e olhou-me. Olhou-me! Olhou-me! Era eu. Fui até ela e propus-lhe coisas. Ela aceitou com a hostilidade de uma prostituta no ato da negociação. Falei como se deve falar: de acordo com o decoro civil de um bêbado. Propus-lhe uma partida e ela sorriu seu sorriso estéril e afiou seu taco. Depois de aplicar-me uma severa sova, bem de acordo com a pretensão contida em meu convite, largou seu taco envenenado pela mesa e foi sentar-se. Eu ajeitei a minha coleira e fui atrás de meu osso. Meu osso, no meu direito, na minha noite! Fui buscar as bebidas e ela disse que era de outra cidade e eu apliquei o protocolo. Ela era nortista, pintava a óleo, coisas abstratas, gostava de gatos e não de cachorros, pintava, gatos com cara de porta, dessas coisas supimpa, tudo muito supimpa! Timidamente, como um idiota, ou como um turista, o que dá no mesmo, pedi que me desenhasse. Ela ajeitou-se e tentou concentrar-se com todo seu ser patético. A meia-luz! Eu disse:

- Vai ser bom. Continue.

Ignorou minha curiosidade por meia hora sobre uma caneta e um papel-guardanapo e concentrou-se e mordeu a língua até se transformar num pitencantropus erectus desenhando com seus seis anos de idade. Mas não importa.

Alessandro Silva
São Paulo, 10/1/2003

 

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