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Segunda-feira, 13/1/2003
Setenta anos do Rio a Chicago
Arcano9

Musicais, ame-os ou odeie-os.

Juro que procurei por pessoas que tivessem visto o filme Chicago. Amigos, colegas de trabalho, familiares. Uma das minhas companheiras de escritório, geralmente fanática por cinema, me explicou, torcendo o nariz, por que não havia visto ainda: "Ah... musical... Não é minha praia". Já para meu irmão, aí no Brasil, eu nem preciso perder tempo perguntando. Uma vez, notando minha paixão pelo querido Fred Astaire, e minha mania de colecionar vídeos de seus filmes da RKO dos anos 30, me disse: "Não agüento esse negócio deles pararem a ação para sair cantando. Que coisa chata!".

Curiosamente, Astaire voltou com força total à minha vida no final do ano. Comprei um dos últimos filmes dele que ainda não havia visto daquela era de ouro com Ginger Rogers, Carefree (1938). Guardei com carinho a fita para assistir assim que termine de rever todos outros que já tenho, incluindo Top Hat (também de 1938), que nem lembrava mais que começa com o passeio de Astaire e Rogers de carruagem pela Whitehall, seguindo pela Westminster Bridge e desembarcando no Battersea Park (ou será algum green em Wimbledon?) A chuva no parque é a deixa para Isn't it a Lovely Day? Oh, Deus, que coisa boa. Foi a primeira vez que revi o filme desde que passei a morar aqui e, acredite, me fez muito bem. Deu vontade de dar um beijo em Londres.

Para este ano, em que Chicago, seguindo a trilha de Moulin Rouge, concorre à consagração nos Globos de Ouro (oito indicações) e provavelmente na festa do Oscar, cabe uma comemoração paralela para o gênero. Pouca gente deve ter lembrado, mas foi em 1933, há exatos 70 anos, que Fred Astaire e Ginger Rogers encarnaram pela primeira vez o casal de dançarinos mais famoso da história do cinema. Foi em Flying Down to Rio, em que os dois nem são as estrelas, mas roubam a atenção, ofuscando até mesmo a pirotecnia do show de dança em aviões, em pleno ar, no final do filme. Nestes 70 anos, o espírito de Astaire foi morto e enterrado, e mesmo que haja tolos como eu que ainda o recordem, provavelmente a maioria dos jovens do planeta nunca ouviu nem ouvirá falar dele. E se ouvir, será como eu ouvi falar de outras estrelas do passado: Rodolfo Valentino, Gloria Swanson. Nada mais que nomes, embalagens sem significado, apenas emaranhados de letras sem sentido.

A questão é: o musical que se vê no cinema hoje - o musical badaladíssimo que entrou em voga no ano passado com a obra prima de Baz Luhrmann, Moulin Rouge, e neste ano prossegue com Chicago - faz juz, ou representa uma continuidade da arte de Astaire e Gene Kelly?

Certamente, a essência está lá. Chicago seria o primeiro musical de sucesso na Broadway e no West End a tomar as telas do cinema e também fazer sucesso desde Grease, em 1978. Muitos acreditam, ignorando o sucesso de Moulin Rouge no ano passado, que o filme deste ano, com Richard Gere, Renée Zellwegger e Catherine Zeta-Jones, tem tudo para ser o musical mais bem-sucedido na noite do Oscar desde Cabaret, que deu o Oscar de direção a Bob Fosse em 1973. Alguns porquês para as previsões otimistas: os críticos aqui na Grã-Bretanha - e eu concordo com eles - acham que Gere, Zellwegger e Zeta-Jones superam as expectativas nos seus respectivos papéis. Um musical é obviamente muito mais do que um filme normal, na medida que os atores têm que cantar, dançar... e acho que eles até se dão bem cantando e dançando. Talvez Gere e Zeta-Jones tenham tido mais facilidade, afinal, chegaram a fazer musicais no início de suas carreiras. Mas... Zellwegger?! Uma missão improvável para a ex-Bridget Jones, que corria o risco de ser a eterna Bridget Jones e provou que é mais do que dietas e cotas diárias de cigarros.

Uma coisa ajudou a atriz. Ainda na seção "você sabia que...?", é realista pensar que Zellwegger deve ter feito sua lição de casa e assistido a primeira versão cinematográfica de Chicago, de 1928, estrelando Phyllis Harver (alguém aí já viu esse filme?). E também o filme Roxie Hart, de 1942, estrelado por Ginger Rogers e baseado na história de Chicago. (E esse? Alguém pode me emprestar para eu assistir no vídeo?)

Na forma como a música e a dança se encaixam na narrativa da atual produção que começam as grandes diferenças em relação aos musicais do passado. A direção de Chicago ficou a cargo não de um diretor de sucesso de Hollywood, mas de um coreógrafo de musicais da Broadway, Rob Marshall. Aparentemente ciente de suas limitações, ou buscando uma forma de tornar mais palatável para pessoas como meu irmão a falta de sentido de uma pessoa cantando no meio de um momento dramático da história, Marshall decidiu transformar os números de dança em momentos de delírio do personagem de Zellwegger. Com isso, a dança pode ser mostrada mais ou menos como é no teatro. Nos musicais antigos, tinhamos a ação levando naturalmente à dança, ou longos e longos minutos em que a dança levava à dança.

Em termos de roteiro, nada muito excitante, o que se encaixa no que sempre foram os musicais - a história importa menos que a forma em que é contada. A grande diferença é que, se antes tínhamos em quase todos os filmes do gênero um componente inegável de celebração, de alegria, de otimismo, em Moulin Rouge o sentimento predominante era a luxúria, o exagero, e em Chicago, o cinismo. Uma sombra paira sobre os personagens de Chicago durante todos os 113 minutos da produção. Roxie Hart (Zellwegger) e Velma Kelly (Zeta-Jones) são assassinas, Billy Flynn (Gere) é um advogado espertinho, e os atores parecem estar às vezes mais preocupados em cantar e dançar bem do que em colocar um pouco mais de credibilidade em seus personagens. Por isso, acho eu, o cinismo dos personagens acaba sendo mais exacerbado. Acho que a melhor comparação seria com o trabalho dos atores de Guerra nas Estrelas (1977). Na época, nenhum deles imaginava que o filme ia estourar. Imaginava-se que não era algo para se levar muito a sério (esse negócio de Força e cavaleiros Jedi, afinal, é uma grande palhaçada), mas, no final, isso provocou uma certa leveza que acho que não conseguiu ser repetida na atual trilogia ne Anakin Skywalker.

O cinismo, depois de Guerra nas Estrelas, virou sinônimo de "ter personalidade" para muitos atores de Hollywood. Mas certamente isso não é verdade. Talvez a fórmula até já esteja gasta, assim como provavelmente foi gasta há muito tempo a fórmula de alegria e romance dos musicais mais antigos. Em Flying Down to Rio, Astaire e Rogers se sobressaem com seu encanto e ofuscam o estranho espetáculo de dança aérea no final. No ano passado, Moulin Rouge e seus efusivos efeitos visuais se sobressaem aos atores - você consegue lembrar de alguma música que eles cantaram naquele filme? Eu não, só lembro que o filme me deixou tonto de tanta cor e imagens sobrepostas. Em Chicago, o que vai ficar na memória? O visual art deco e as pernas das atrizes? Triste forma de lembrar um filme. Por isso gosto de Woody Allen: é a personalidade do diretor que está lá. Por isso gosto de Fred Astaire: era a personalidade dele em seus filmes, o toque de gênio, o perfeccionismo. Colocar um bando de astros de hollywood para fazer um musical é simplesmente uma opção mercadológica - um filme com Zeta-Jones, Gere e Zellwegger tem tudo para dar certo, porque eles são conhecidos. Eles chegam, exercitam seu cinismo e enchem os bolsos de grana.

O melhor, na minha opinião, seria buscar por atores realmente acostumados a fazer musicais, os que estão em cartaz aqui em Londres, por exemplo, encenando Chicago no teatro Adelphi, na Strand. Vantagens: eles conhecem bem os personagens; estão cansados de dançar, sabem de cor e salteado as letras das músicas e se esforçariam para mostrar que são bons atores. Eles teriam algo para provar, entende? Desvantagem: eles não são Aldebarãs e Antares do firmamento da sétima arte... Não garantiriam dinheiro no bolso da Miramax. Ou será que sim? Veja só que contradição... Chicago é todo sobre a criação artificial de celebridades, o que faz muito mais sentido hoje (com os Big Brothers e No Limites da TV) do que em 1926, quando a jornalista Maurine Watkins escreveu a história. Se há essa ambição de fazer ressurgir o musical como gênero, deveria-se, então, buscar novas estrelas para o gênero, criando todas as condições para que elas desabrochassem. Deveria-se valorizar essa gente completamente nova, esses novos talentos, como, há 70 anos, a RKO decidiu apostar no fantasma magricela e dar a ele e a Ginger o estrelato.

Arcano9
Miami, 13/1/2003

 

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