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Segunda-feira, 20/1/2003
Rembrandt na privada, por Jean Genet
Jardel Dias Cavalcanti

Rembrandt nasceu em 15 de julho de 1606. Quando era jovem aspirante a artista seus pais logo reconheceram que sua propensão para a arte era demasiado forte para não ser levada a sério. Sendo assim, permitiram que abandonasse os estudos e se dedicasse exclusivamente à sua vocação maior: pintar. Nesse sentido, quando sabemos o quanto são perseguidas e maltratadas pelas famílias as vocações artísticas, Rembrandt é um caso raro na história da arte.

Além de dedicar-se apaixonadamente aos quadros narrativos (tema que desde o Renascimento era considerado superior a todos os outros), Rembrandt dedicou-se a pintar retratos e, principalmente, auto-retratos. O artista representou a si mesmo com muito mais freqüência do que fizeram todos os outros mestres renascentistas ou barrocos. Isso pode causar estranheza, já que sua elevada ambição era tornar-se artista narrativo, não mero pintor de rostos. São conhecidos mais de 75 auto-retratos, entre pinturas, desenhos e gravuras. Este registro, que cobre um período de 45 anos, talvez se configure como a mais perfeita autobiografia já deixada por um artista. Neles Rembrandt aparece como o galante arrojado, o burguês decoroso, o titã majestoso e, por fim, como o sábio idoso.

Estes retratos mostram como Rembrandt cultivou os fortes contrastes de luz e sombra para dar um caráter dramático à sua obra. Em geral o artista se retrata de forma vigorosa, mergulhado em sombras profundas que o destacam contra fundos claros. Esta forma de pintar, equilibrando magistralmente luz e sombra, produz um efeito dramático audacioso. Em suas obras, luz e sombra são como dois seres estreitamente interligados. Oscilam um para o outro produzindo uma atmosfera repleta de sugestões e mistérios. Pela flutuação da luz a figura é incorporada a um ambiente vivo e vibrante. O que Rembrandt desejava, ao fazer espaço e figura compartilharem de uma existência inseparável, era dar à atmosfera do quadro um significado tanto visual como espiritual. Sua pintura será sempre precisa e intimista, mesmo quando surgirem os claro-escuros sutilmente difusos, com predominância de cores frias e delicadas.

Explorando de forma variada as texturas que a tinta à óleo permite (empastes claros, fundos ralos, arranhões feitos com o cabo do pincel na tinta ainda úmida), o resultado de suas obras prenunciam as liberdades que seriam conquistadas pela arte somente à partir do século XIX. Mais do que isso, seus retratos nos transportam a um mundo de esplendor e a uma intimidade fascinante.

No Auto-retrato pintado em 1659 (National Gallery of Art, Washington), Rembrandt se faz representar mediante uma composição ampla, com rico tratamento pictórico que mescla um claro-escuro ao mesmo tempo vigoroso e suave. A figura parece banhar-se em uma luz interior que faz denotar uma rica vida espiritual, fruto de muitas experiências trágicas que deixaram suas marcas no rosto retratado. Uma preocupação com a auto-análise aparece na sua expressão imponente. Os músculos faciais já estão flácidos, mas, ao mesmo tempo, evidenciam grande sensibilidade. Os olhos do artista idoso aparecem grandes e dominadores, revelando um ser humano vulnerável. Mas o pesar que o acomete aprofundou-lhe a compreensão. Ele está livre do rancor, da comiseração por si mesmo e de quaisquer reações sentimentais fúteis.

Jean Genet parou diante deste quadro e de muitos outros retratos de Rembrandt. Percebeu neste retrato derradeiro "uma firme bondade." Disse que dele se poderia ouvir as seguintes palavras: "Sou de uma tal inteligência que mesmo os animais selvagens perceberão minha bondade".

Genet observou diretamente a obra de Rembrandt em viagens que fez a Londres, Amsterdã, Munique, Berlin e Dresden. A parti daí, publicou na revista francesa LŽExpress um artigo denominado O Segredo de Rembrandt que eram extratos de um livro que anunciava publicar pela Editora Gallimard. O livro não foi terminado. Em 1964, perturbado pela morte de seu amigo Abdallah, rasgou uma mala cheia de manuscritos. Sobre o pintor só sobraram dois fragmentos, que saíram em 1967, na revista Tel Quel, com o título: O que restou de um Rembrandt cortado em pequenos quadrados bem regulares, e jogado na privada.

Foi publicado entre nós, em tradução de Ferreira Gullar e editado pela José Olympio, estes dois textos. É uma edição caprichada com fotos de várias telas, coloridas e em preto-e-branco, como também desenhos de Rembrandt. Conta ainda com um índice de obras nos quais se pode ver as fotos dos quadros e dados sobre elas.

Os textos apresentam a visão pessoal de Genet sobre Rembrandt. Portanto, não se espere encontrar no livro um estudo típico de história da arte. Aqui o que conta é o resultado do encontro de dois artistas. Nós já sabemos o quanto é profícuo este tipo de encontro. Veja-se: Baudelaire e Poe, Baudelaire e Richard Wagner, Debussy e Mallarmé, Stravinsky e Picasso, Berio e Joyce, Sartre e Genet, entre tantos.

A marca desse encontro pode ser traduzido nos termos escritos por Genet: "Seu olhar não era o de outro: era o meu que eu reencontrava num espelho, inadvertidamente e na solidão e esquecimento de mim".

Genet é sensível à pintura de Rembrandt. Não poderia ser diferente, pois foi capturado pelos mínimos detalhes de suas telas: navega entre tecidos, peles, olhares, marcas da idade, tapetes e cortinas. Apreende nesses detalhes dissolvidos pelo claro-escuro de Rembrandt os universos da sensualidade, da solidão, da sabedoria, da alegria, do sublime, do metafísico. Desvenda o realismo e a impiedade de Rembrandt, mesmo quando retrata sua mãe: "ele os pinta com prazer, finura, mas, mesmo o de sua mãe, sem amor. As rugas são escrupulosamente marcadas, os pés-de-galinha, as pregas da pele, as verrugas..." Mas se questiona se será isso mesmo ou "talvez por simpatia, pelo prazer da dificuldade de pintar ... quem sabe?"

Mas de uma coisa ele sabe - o que a pintura de Rembrandt busca é o belo: "agradável ao olhar ou não, a decrepitude é real. E, por conseguinte, bela." Para Genet "tudo tem sua dignidade, e o homem deve se empenhar antes de mais nada para dar significação ao que parece desprovido dela". Aqui podemos pensar nas próprias obras de Genet para a literatura, com sua recuperação dos sentimentos e dos mundos rejeitados pela "boa sociedade".

Suas reflexões sobre a pintura do mestre holandês partem de uma observação atenta, de uma cumplicidade necessária ao envolvimento efetivo do observador com a obra amada (para Genet se trata disso). Sua observação, fazendo uso de metáforas certeiras, é aguda: "Os personagens, quase sempre, com seus gestos suspensos, contidos, são como um ciclone momentaneamente dominado".

Genet nota a importância que a leitura da Bíblia e o desejo pelo luxo e pelo fausto (que se traduzem em sensualidade) têm na sua imaginação artística. E acerta, bastando-nos conferir seus retratos da esposa Saskia, coberta de ouro e veludo e notando a teatralidade de suas obras narrativas.

Outra coisa que Genet observa em Rembrandt é a riqueza imensa que se acomoda à cada pequeno trecho das telas do mestre, mais ainda na sua velhice, quando preocupa-se mais com a expressão que com a representação fiel de seus retratados. Com isso, passamos a notar que "a manga, em La fiancée juive, é um quadro abstrato". E aí está a genialidade de Rembrandt: "este esforço lhe possibilita desfazer-se de tudo que o poderia reconduzir a uma visão diferenciada, descontínua, hierarquizada do mundo: uma mão vale um rosto, um rosto um canto de mesa, um canto de mesa um bastão, um bastão uma mão, uma mão uma manga (...)".

Para Genet Rembrandt transferiu-se inteiramente para sua obra. E o segredo de Rembrant, conforme o título de um de seus artigos, desvela-se para nós, nas palavras do autor de O diário de um ladrão:

"Em seu derradeiro retrato, ele zomba do mundo docemente. Docemente. Ele sabe tudo o que um pintor pode aprender. E antes de tudo (enfim, talvez?) que o pintor está totalmente no olhar que vai do objeto à tela mas, sobretudo, no gesto da mão que vai do pequeno charco de tinta à tela. O pintor está ali concentrado, no curso tranqüilo, seguro, da mão."

Este livro de Genet torna-se uma leitura de extrema importância, pois nos dá o que a ciência da arte (a história da arte) não nos pode dar: a capacidade de, através de ricas metáforas, mergulhar profundamente no universo irracional da criação artística. Pois, como dizia Merleau-Ponty, "a ciência manipula as coisas e renuncia a habitá-las". Com artistas pensando a arte é diferente.

Para ir além


Jardel Dias Cavalcanti
Campinas, 20/1/2003

 

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