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Quarta-feira, 20/6/2001
Duas noites de sono mais tarde
Paulo Polzonoff Jr

Nada melhor do que uma boa noite de sono. Ou melhor, duas. Porque Pearl Harbor é, à primeira vista, um filmão. Explico melhor: em cinema, a última impressão é a que fica. E, como a última hora de Pearl Harbor se baseia em boas cenas de batalha, saímos do cinema achando que vimos, ao menos, entretenimento de qualidade. A percepção humana, dentro da sala escura de projeção, é facilmente enganável.

Aconselharia o leitor, caso ainda se sentisse tentado a assistir a Pearl Harbor, a entrar no cinema depois da primeira hora e meia de projeção. Não é conselho fácil, destes de se ignorar. Depois não digam que não avisei... A primeira hora e meia do filme é deveras uma temeridade. Só mesmo a pipoca que se come é capaz de fazer algum sentido neste tempo. Que fazer nesta hora e meia? Sei lá, leia um livro, vá ao banheiro, fique conversando com aquela linda atendente na bombonière. É um favor que o espectador faz a seu cérebro precioso e raro.

Não exagero. Fazendo uma comparação com aquele que é o mais água com-açúcar dos blockbusters recentes, Titanic, percebe-se o quanto o cinema decaiu em apenas três anos. Todos se lembram de Titanic, não é mesmo? Leonardo di Caprio, Kate Winslet... Pois é. Pensando bem, no filme de James Cameron ao menos havia um certo sentido naquele triângulo amoroso. Para aqueles que gostam de ver chifre em cabeça de cavalo (aqui este recurso se faz necessário), pode-se até dizer que havia ali uma pitada de luta de classes (Marx deve ter dado três pulinhos em sua tumba agora!). Em Pearl Harbor, a história de amor não tem sentido. Não passa de um folhetim de corar um José de Alencar. Os diálogos foram escritos, por certo, por um roteirista de novela mexicana, cujo nome não aparece nos créditos. Coisas como "meu coração só bate por você", "nunca vou te esquecer, amor da minha vida", "batatinha quando nasce esparrama pelo chão" marcam o ouvido de quem assiste Pearl Harbor como aquele melado vermelho que envolve a maçã do amor.

Por que comparar um e outro filme? São as produções mais caras do cinema recente. São filmes que têm importantes fatos históricos como pano de fundo. São produções que primam pelos efeitos digitais. São filmes que despertam paixões arrebatadoras ou ódios mortais. São filmes que vão arrecadar uma enormidade de dinheiro e laudas e mais laudas de críticas e comentários - como este, infelizmente.

A que ponto o cinema chegou, pergunta-se?! Este é, finalmente, o fundo do poço? Temo que não... Esta hora e meia a que me refiro é, por assim dizer, o prólogo da história. Somos apresentados aos mocinhos e à mocinha do filme. Amigos de infância, um deles se apaixona, numa base aérea, pela enfermeira. O piloto, um verdadeiro herói americano, um ás dos céus da América, é também (doce e suave ironia) um disléxico. Como era de se esperar, os dois se apaixonam. Pois bem, somos também apresentados ao amigo do piloto (os nomes não nos interessam. Convém dizer que o disléxico é interpretado por Ben Affleck. Apropriadamente), também um apaixonado pela aviação e protegido pelo primeiro desde a infância. O personagem interpretado por Ben Affleck vai lutar na Inglaterra, onde acaba sendo derrubado por um caça alemão. Cai no mar, mas é resgatado. Só que, à enfermeirinha que ele deixou nos EUA, avisam que ele está morto. O que acontece então? Ganhou um prêmio quem disse: ela se apaixona pelo mui amigo. E eles ficam nesta lenga-lenga até que o piloto que todos consideravam como morto volta. Instala-se, então, um triângulo amoroso chinfrim quando explodem as primeiras bombas sobre Pearl Harbor.

Os japoneses, ah, os japoneses. No filme, eles são retratados como verdadeiros alienígenas de um ID-4 (alguém se lembra?). Todos têm cara de mau - que meda!! Nenhum deles dá um sorriso sequer. De qualquer forma, eles fizeram seu papel: bombardearam a base naval no Havaí e criaram um bom pretexto para os EUA entrarem na guerra...

... e fazerem este filme.

A patriotada americana em Pearl Harbor supera as espectativas. Modestamente, tenho de dizer que sabia que haveria patriotada. E não se trata, óbvio, de grande façanha. Quem viu os recentes O Resgate do Soldado Ryan ou O Patriota sabia que Pearl Harbor teria uma overdose de ufanismo. Passa da cota aceitável, contudo. Porque, para embasar seu patriotismo exacerbado, Pearl Harbor não hesita em subverter a história. O contra-ataque do filme, por exemplo, contra alvos pretensamente militares em Tóquio, é de uma mentira sem tamanho. Os EUA atacaram Tóquio, sim, mas atingiram muitos alvos civis (em Pearl Harbor, é bom lembrar, só foram atingidos alvos militares). Além disso, não tinha um propósito estratégico. Foi realizado tão-somente para levantar o moral das tropas americanas que se refaziam de Pearl Harbor. Sei que é lugar-comum, mas é aquela coisa: a história é contada pelos vencedores...

Ah, sim, sugiro a Hollywood - como se Hollywood me ouvisse!! - que fizesse um filme tão ou mais patriótico, tratando da bomba atômica: 100 mil mortos e cerca de meio milhão de feridos em Hiroshima e Nagasaki. Quero ver provar que foi algo honroso.

Assim como em Titanic, o que salva um pouco, mas só um pouco, Pearl Harbor são os efeitos especiais. O ataque à baía havaiana é um verdadeiro show, com explosões bastante realistas. O destaque vai para a explosão do U. S. S. Arizona, cujo paiol foi atingido. O navio, contam os relatos, chegou a levantar o casco todo sobre a água, como se vê no filme. Houve quem reclamasse dos marinheiros escorregando pelo convés dos navios que adernavam. Ora, é isto que acontece quando um navio aderna, seja ele um encouraçado de guerra ou o Titanic. As cenas de perseguição dos aviões P-40 aos "Zeros" japoneses são patéticas, porque parecem simuladores de computador. Há rasantes a cerca de um, dois metros do solo. E no meio da rua. Ridículo? Sejamos condescendentes com esta singela licença poética...

A única contribuição, mesmo, de Pearl Harbor ao cinema mundial é a criação de um roteiro revolucionário, porque não tem um vilão. Isto mesmo. A historinha boba do filme carece de um personagem carismático, como aquele aristocratazinho arrogante de Titanic (novamente ele). Os americanos são tutti buona gente. Quem me leu até aqui talvez esteja escandalizado com a pequena verdadezinha contida neste texto: Titanic é infinitamente superior a este Pearl Harbor. É como eu disse a um amigo depois de ter ido assistir a O Retorno da Múmia, comparado incessantemente à trilogia Indiana Jones pela imprensa pretensamente especializada: haverá um dia em que Spielberg será considerado um diretor tão clássico, difícil, hermético e obscuro quanto um Bergman.

Marx, PFL

Uma amiga, à mesa, tem uma idéia bastante interessante. Criticando o absurdo do academicismo no Brasil, com seu discurso monocórdico, pensa em defender uma tese que seria o supra-sumo do sofisma: uma leitura à direita de Karl Marx. Pode parecer absurdo, mas, que seria genial, ah, seria.

Bate-estaca

Stockhausen, maestro ou coisa que o valha, deu entrevista à revista Veja dizendo que a música eletrônica é a maior revolução musical jamais concebida pelo homem. Com um ego de deixar Caetano na lona, o maestro (ou coisa que o valha) alemão se diz o papa deste gênero de música e o único grande gênio da música erudita vivo. Acredite quem quiser.

Doido de Pedra

Bicho de Sete Cabeças, filme de Laís Bodanzky que deve estar nesta semana em circuito comercial, recebeu de Luis Carlos Merten, crítico do Estadão, um elogio superlativo: o melhor filme brasileiro da década, desde a retomada. Puxa! Sem saber disso, o autor do livro que deu origem ao filme, Austregésilo Carrano, andou por Curitiba, sua cidade natal, concedendo entrevistas no mínimo curiosas, nas quais dizia que o filme seria o representante do Brasil no Oscar 2002. If you know what I mean...

O ego é meu

Quem diz que arroz com feijão não combina com um bom vinho? Quem me assegura é o mesmo Ed Motta. Pouco tempo depois de eu dizer, aqui neste Digestivo, que arroz com feijão é uma obra-prima culinária.

Paulo Polzonoff Jr
Rio de Janeiro, 20/6/2001

 

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