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Segunda-feira, 3/2/2003
Zoológico da malandragem
Eduardo Carvalho

Zé Carioca

Existe ainda, no Rio de Janeiro, uma espécie típica brasileira, muito engraçada e muito esperta, que resiste aos avanços tecnológicos e à pressão cultural civilizadora: a do malandro carioca. Não sei quando se extinguirá completamente. Mas persiste com firmeza - e seguirá existindo, enquanto, pelo menos, sobrevivem os exemplares vivos. Porque malandro nasce e morre malandro. Nasce e morre no bar, de preferência - onde, no intervalo entre sua natividade e seu velório, passa a vida conversando. Sobre tudo. Conversas de homem sério: trabalho, esposa, filhos, dinheiro, política, economia; e conversas de malandro: cerveja, amante, futebol, jogo do bicho, carnaval - e golpes que, eventualmente, um malandro aplica. O malandro vive, na verdade, - apesar de seu discurso em estilo convincente e com conteúdo moralista - de aplicar golpes. Ele é, portanto, uma espécie carismática e divertida: mas é, ao mesmo tempo, um incômodo obstáculo à sociedade civilizada. Por um motivo simples: não há civilização sem confiança - e é praticamente impossível confiar em um malandro profissional.

Estive, na semana anterior ao Natal, de passagem pelo Rio - de onde, por coincidência, acabei de voltar de outra viagem. E visitei seguidamente, para lanchar e almoçar, um reduto freqüentado tradicionalmente por malandros, que serve talvez o melhor chope e os melhores salgadinhos cariocas: o Bracarense. É pequeno e apertado, mas, depois que você se acomoda, é também simpático e acolhedor - apesar do banheiro, sempre sujo. Os garçons, aliás, são rápidos e competentes - o que, no Rio, é quase anormal. Mas confesso que, apesar de tudo - apesar de todas as indiscutíveis qualidades do bar -, não foram exclusivamente esses os motivos dos meus petiscos. Antes de decoração ou culinária, meu interesse era, digamos, antropológico. Meu entretenimento principal era ouvir conversas alheias. Dos outros com os outros ou dos outros comigo mesmo - são todas, no fim das contas, alheias. Porque malandro gosta de contar histórias, seja para quem for. E eu gosto de ouvir, seja de quem for - com um relativo padrão de exigência, é claro. E acompanhei e ouvi, entre outras, a história a seguir:

Sento no balcão, com um amigo - em bancos separados, que fique claro. Ao lado de um sujeito de aproximadamente 45 anos, que conhece todos os garçons pelo nome. Discuto, com meu amigo, as opções de pratos servidos. O sujeito interfere, apontando para o cardápio, de boca cheia:

- Pede rabada. Tá uma delícia. Só não sei se ainda tem. - Um grão de arroz escorrega no canto de sua boca. Ele chama o garçom:

- Ô, Leandro, ainda tem rabada pros paulista?

- Só pedaço pequeno - responde Leandro, o garçom.

- Faz assim, então - continua o malandro. - Vocês tão em dois. Pede uma rabada com pedaço pequeno mesmo, que é melhor do que nada. E um prato de carne assada.

- Pô, mas a gente não gosta muito de carne assada - corrigi, depois de consultar meu amigo. - Vamos querer uma refeição de pernil e outra de carne assada.

- Boa escolha! - comenta, enquanto ajeita alguma coisa entre as pernas. Em seguida, pega o osso da rabada, e começa a roer:

- Tão servidos?

- Agora não, obrigado. Vamos esperar o nosso prato.

- É melhor mesmo. Vem comida pra cacete. Vai uma caipirinha de maracujá?

- Não, mas obrigado. Vamos tomar chope.

- Aê, Fábio! - reclama o malandro, ao outro garçom, que está lavando os copos. - Já são duas e meia. Combinei à uma com o portuga e ele não chega. Traz aí outra caipirinha. Esse portuga... É duro combinar alguma coisa com gente muito ocupada.

Chega nosso chope, meu e do meu amigo. E, depois, os pratos escolhidos. O portuga entra no bar, com seu inconfundível bigode.

- Finalmente, meu irmão! Aê, os negócios devem estar bem, hein? Mas senta aí. Como andam as coisas?

E continuam no papo, os dois, enquanto apreciamos nossa comida. O portuga vai ao banheiro, quinze minutos depois. O malandro volta-se para nós, com a testa encharcada de suor:

- Maravilhoso, hein? Esse pernil é uma delícia!

- É mesmo - respondo, laconicamente:

Entra outro sujeito no bar:

- Aê, posso sentar aqui? - pergunta ao malandro, apontando para o banco do português.

- Ô, meu príncipe. Esse lugar é do portuga, ele só foi no banheiro.

- Caracas, meu irmão. Você come até o osso da carne, aê. Nunca vi...

- Isso aqui é uma maravilha! Pode pedir um. O portuga vai comer um também, você vai ver.

O portuga reaparece do banheiro, no fundo do bar.

- Olha o portuga aê! - diz o malandro.

- Ah, estou aliviado - comenta o portuga, quando senta no banco, com o rosto oleoso.

- Olha aí, Gabriel. Já pedi seu prato, como você queria - diz o malandro, cheio de alegria. E se volta pra mim:

- Você não sabe. Esse portuga é um gênio. Não conheço ninguém mais esperto. Diz aê, portuga!

- Não, não. Que é isso. - responde Gabriel, o portuga, encabulado, enquanto apalpa a barriga. - Ele é que diz isso...

- É nada! Olha só. Vou te contar. É impressionante, a história desse português. Dá pra escrever um livro.

- Ah é? - pergunto, curioso. - Diz aí, então.

- Olha só. Ele chegou no Brasil há quinze anos. Em Portugal, antes de vir pra cá, estabeleceu uma meta: ia ficar rico em no máximo cinco anos. Sabe o que aconteceu?

- Não; não sei.

- Em três anos ele estava milionário. De tanto trabalhar. Quando chegou no Rio, foi ser ajudante de obra. Carregava saco de cimento o dia inteiro. Dormia num barraco e economizava dinheiro. Em seis meses conseguiu comprar uma Kombi. Lembra da sua Kombi, portuga?

- Eh, eh. Lembro, lembro - responde o portuga.

- Era muito boa, a Kombi do portuga. Ele fazia mudanças. Tinha três ajudantes. Ele dirigia. Dois carregavam os móveis. E o último ficava do outro lado da Kombi, quando o português ia fechar a porta do lado dele. Sabe pra quê?

Ele se levantou do banco, depois de acabar seu prato, esperando eu perguntar o que ele queria, para me explicar com movimentos.

- Pra quê? - perguntei.

- Pra segurar a porta! Ah, ah, ah! Era muito engraçado! Imagina! O português aí, fechando a porta - e ele imitava o português, com detalhes - e a porta do outro lado caía.

- Ah, ah, ah - respondemos, simpaticamente, eu e meu amigo. De fato, o modo como ele contava a história, imitando o português e seu ajudante, era cômico.

- É verdade, é verdade! - confirmou, em gargalhadas, o português, com aquele sotaque característico.

- E agora, veja só. Um homem muito bem sucedido. Dono de uma das maiores transportadoras da Zona Sul. Faz quase todas as mudanças aqui do bairro, com 17 caminhões. Isso é produto do trabalho, meu amigo.

Reparei no português. E, às três horas da tarde, num bar, bebendo, com a camisa aberta e um Rider no pé - parecia tudo, menos um homem sério e trabalhador. Muito menos bem sucedido. Mas o malandro não parecia irônico. E o portuga ouvia as histórias com atenção, como se fossem mesmo verdadeiras. E, descontados os evidentes exageros, provavelmente eram mesmo. Porque o malandro continuou, explicando o segredo do sucesso do portuga, depois de outras anedotas desimportantes:

- Mas eu disse: o português é um gênio. Sabe o que ele faz? Ele não paga um imposto, meu irmão. Tudo no esquema. Ele descobriu um sistema que é uma maravilha!

- E qual é? - perguntou, dessa vez, meu amigo.

- Quando ele vai atravessar uma fronteira estadual, ele pára na delegacia da última cidade, e diz que perdeu ou roubaram os documentos do caminhão. E faz um B.O. Aí, quando os policiais pedem os documentos, ele só mostra a papelada. E não paga nada! Quer dizer, quem faz isso são os motoristas, e não o portuga. Ele só comanda o negócio, hoje em dia.

- Hum. Interessante. E não tem problema? - perguntei.

- Nenhum - responde o português. - Qualquer um pode fazer. Experimente, se precisar. É muito fácil. Economizo um dinheirão assim.

- Eu falei, eu falei! - Insistia o malandro, orgulhoso - É um gênio, esse portuga!

A conversa se prolongou, depois desse assunto. Por vários tópicos, sobre os quais, invariavelmente, o malandro possuía um conhecimento absoluto - ou, pelo menos, falava como se tivesse. E, sobre muitos, deveria ter mesmo, porque ele sabia direcionar o diálogo sempre para o assunto que mais lhe apetecia. Diálogo não: monólogo. Ele discursava com verve e vontade, exibindo aleatoriamente sua distinta sabedoria sobre o submundo carioca: suborno de policiais; disputa nas favelas; carnaval e futebol; políticos corruptos; amigos corneados; filhos drogados; etc., etc. E eu me perguntei, ao sair do bar, se não era, afinal, o próprio Brasil um submundo: habitado por gente muito engraçada e muito divertida, mas que, pelo jeito, prefere lamber as sarjetas do mundo civilizado do que definitivamente inserir-se nele.

Eduardo Carvalho
São Paulo, 3/2/2003

 

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