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Quarta-feira, 20/6/2001
Jornal e salsicha
Daniela Sandler

Não sei se vocês já ouviram aquela comparação do jornal e da salsicha - provavelmente não, acho que é "piada interna" de jornalista. Diz que jornal é como salsicha: se você soubesse como um e outra são feitos, nunca mais os consumiria. Eu trabalhei na redação de um grande jornal por quase um ano e, enquanto estava lá, fui impregnada por esse "auto-sarcasmo", ou cinismo, como queiram chamar. Vi como muitos textos são feitos às pressas; como não há tempo ou condições para se dedicar às reportagens; como o parco salário, a sobrecarga de trabalho e a pressão exagerada esgotam os neurônios e a criatividade; e como há gente despreparada falando de coisas importantes.

Não que todo mundo seja assim (se eu me achasse incompetente, não teria estado lá nem aqui). Mas, no mínimo, a gente começa a duvidar da própria relevância social. Eu escrevia sobre ciência. No fim, eu me perguntava se eu fazia diferença. Será que alguém me lia? E se lesse, será que, no dia seguinte, esqueceria?

Não surpreende que o cinismo seja tão comum entre jornalistas. A obrigação de escrever sempre sobre o novo (ou sobre o que parece novo) faz com que as notícias se sucedam sem que nenhuma pareça ter importância intrínseca, tendo valor apenas em sua novidade momentânea. No fim, vira tudo um "e daí?"...

Mas nesse feriado que passou eu tive uma iluminação. Ou melhor, uma "lembração". Lembrei por que resolvi ser jornalista em primeiro lugar: achava que poderia ajudar a melhorar a sociedade e a pôr luz nas coisas "erradas". Lembrei-me disso não como jornalista, nem mesmo como leitora, mas, por assim dizer, quando me vi do outro lado do balcão.

O motivo pode parecer prosaico. No domingo de feriado, a Nordeste, companhia aérea pela qual eu voaria de Salvador a São Paulo, confirmou o vôo de 140 passageiros para um avião em que só cabiam 117. Pelo número, já não é nem caso de overbooking, mas de irregularidade e mau-caratismo (ou de incompetência absoluta). Total desrespeito aos passageiros, uma sucessão de erros, nenhum preparo para lidar com a situação, omissão deliberada de informações... e trinta pessoas aglomeradas por quase três horas no saguão de espera do Aeroporto Dois de Julho (é o aeroporto internacional de Salvador, mas eu me recuso a usar o novo nome - não quero fazer propaganda política).

Imaginem trinta pessoas cansadas, estressadas, recebendo informações vagas e confusas, que pagaram pela passagem, confirmaram o vôo e chegaram com duas horas de antecedência, e que não sabem mais quando vão embarcar para casa. Duas funcionárias atarantadas atrás do balcão de passagem, entre as súplicas dos passageiros e as instruções dos superiores, parecem aquele joão-bobo que a gente joga de um lado para o outro. O supervisor, evasivo e melífluo, mente aos passageiros e escorrega como sabão. O avião lotado (com passageiro até na cabine do piloto) parte, claro, sem a maioria dessas pessoas, que ainda têm de esperar duas horas para ser levadas ao hotel em que passariam a noite. A segunda-feira estaria perdida: os dois primeiros vôos já estavam lotados; no terceiro, às 11 da manhã, só havia seis lugares.

O saguão se esvazia, as outras companhias já embarcaram seus passageiros, ninguém parece ligar muito para a turma que sobrou. Processo, alguns dizem, não vai adiantar nada: as companhias são muito poderosas, a gente não tem força nenhuma. Reembolso, compensação? Acho que essas palavras não existem no Brasil (nos Estados Unidos, quando há overbooking, as companhias oferecem, além de hotel e traslado, compensações que vão de passagens aéreas gratuitas a US$ 200 em dinheiro). A indignação é acompanhada da sensação de impotência. O péssimo serviço da Nordeste não seria compensado; os prejuízos causados pelo atraso, estresse e espera não seriam ressarcidos. Uma menina fala com seu advogado pelo celular e tenta entrar no último vôo da noite, também lotado. Típico: soluções particulares, individuais, jeitinho brasileiro.

Por sobre os ombros da menina, eu vejo um homem tirando fotografias, com uma máquina mais equipada que a média das câmaras turísticas. Não, não há de ser recordação de férias ("amigos que fiz enquanto esperava no aeroporto"). Olho de novo. Sim, não há dúvida: um repórter fotográfico! Instintivamente procuro seu par: alguém com um bloquinho nas mãos. Está lá, mais adiante: um rapaz rodeado por alguns passageiros, anotando. Um repórter!

Muitas pessoas se aproximavam do moço para dar sua versão da história e registrar suas reclamações. O repórter ia reconstruindo os acontecimentos a partir dos relatos, chegando aos nomes que deveria procurar - por exemplo, o supervisor. Os pontos a esclarecer iam sendo definidos tanto pelas perguntas do repórter quanto pelas questões que as pessoas entrevistadas colocavam. Chegando perto do repórter, cada um de nós enunciava nossas críticas ("Overbooking de trinta pessoas não é overbooking, é outra coisa", "Deixaram a gente esperando duas horas sem informar nada"): aquele homem parecia a voz mais poderosa para fazer chegar as nossas preocupações aos ouvidos de quem poderia respondê-las.

A situação seria finalmente explicada: em lugar das contradições e desculpas, o repórter ia achar "a" verdade. A injustiça ficaria visível para além do saguão de check-in, e talvez alguém fizesse alguma coisa. O draminha daquelas trinta pessoas ganharia dimensão social (de fato, exemplo que é de uma situação cada vez mais comum nos aeroportos brasileiros).

Eu sei, por experiência própria, que repórter não é bombeiro da sociedade. Mas o jornalismo é capaz de gritar "fogo!" muito mais alto do que eu, sozinha (e, se eu começar a gritar muito alto, provavelmente vou aparecer no jornal). Todos nós temos muitos exemplos de mudanças políticas, sociais e econômicas (e conjugais...) impulsionadas por reportagens, colunas e editoriais, para o bem e para o mal. Um dos retratos desse lado heróico está no filme Todos os Homens do Presidente, cujo tema é o escândalo de Watergate.

Longe, porém, de eventos bombásticos, o que eu senti naquele aeroporto me fez pensar, por exemplo, nas lutas urbanas cotidianas, em moradores de um bairro sem esgoto, sem ponto de ônibus, sem hospital, em que de repente chega um repórter para registrar o córrego sujo passando no meio das casas. Pensei na invisibilidade social, na ausência de mecanismos para reivindicar direitos, e na sensação de alívio, reconhecimento e esperança que a visita simples de um jornalista pode e deve dar.

No fim, o draminha do aeroporto não saiu no jornal. A notícia não era tão grande ou nova assim, talvez; talvez outras considerações editoriais (falta de espaço, um anúncio ocupando a página inteira) tenham contribuído. E mesmo se tivesse saído, talvez nada acontecesse. Não é uma reportagem que vai tornar decentes as companhias aéreas ou as políticas habitacionais. Mas, se jornalista não é bombeiro, há vantagens nisso: não tem de carregar o caminhão e as mangueiras para onde quer que vá. Pode se esgueirar, se mover mais rápido, se disfarçar.

Voltei de viagem e abri uma revista semanal. Torci o nariz - não vou mentir a mim mesma e dizer que salsicha é caviar. É salsicha, e não muito apetitosa. Mas também não vou esquecer que pode ser diferente. Que talvez tenha sido assim que tudo começou. Que foi, com certeza, esse o motivo pelo qual eu comecei.

Ficha técnica

Todos os Homens do Presidente (All the President's Men, EUA, 1976). Direção: Alan J. Pakula. Com: Robert Redford, Dustin Hoffman, Jason Robards.

Para uma lista comentada de outros filmes sobre jornalismo, veja Inovações no Jornalismo, site mantido pela PUC de Campinas.

Daniela Sandler
São Paulo, 20/6/2001

 

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