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Quarta-feira, 5/2/2003
O primeiro mico para o resto de nossas vidas
Rennata Airoldi

Todo começo de ano acontece uma coisa muito curiosa. Não estou falando de festas ou carnaval. Nem mesmo de viagens, belas paisagens e do sol do verão. Estou falando de um momento crucial na vida dos estudantes. É, sem dúvida, um mês decisivo para aqueles que prestam o vestibular. E, hoje em dia, há tanta escolhas, tantas opções, não só quanto as carreiras profissionais, mas também no que diz respeito às instituições. Elas se diferem desde os valores das mensalidades até o nível do ensino. Desde as universidades públicas até as mais caras (para quem pode pagar), a pressão é a mesma, no momento da entrada e na hora saída.

Vou me explicar melhor. Não quis fazer aqui nenhuma piadinha de mal gosto, muito pelo contrário. Quero dizer que entrar numa Universidade é sem dúvida um grande desafio e uma grande conquista. Sair, por incrível que pareça, também. Foi-se o tempo em que os universitários saíam empregados ou ainda que o emprego procurava os arrojados recém-formados. E isso devo dizer que, infelizmente, acontece cada vez mais em todas as áreas. Portanto, fazer a opção certa, aquilo que o estudante realmente deseja, é um passo importante.

Na verdade, estou escrevendo tudo isso para dizer que: neste mês, enquanto uns entram, outros recebem seu diploma - e embarcam na sua própria viagem profissional, uma aventura sem volta! Bem, nas Artes Cênicas acontece assim. Isso ao menos na Faculdade de Artes Cênicas da UNICAMP. (Para quem não sabe, é a faculdade que forma atores). Em janeiro, ocorrem, além das provas teóricas, as provas práticas. As temíveis e hilárias provas de aptidão. É realmente um momento único na vida do ator. Não sei se pela ingenuidade ou pelo despudor que toma conta dos concorrentes. Cenas absurdas que são levadas à sério, idéias mirabolantes com realizações precárias! De qualquer forma, é preciso coragem para enfrentar a banca e os veteranos que todo ano comparecem para "sentir" as tendências e as promessas da nova turma que está chegando.

Óbvio que o olhar dos alunos perante os calouros é bem diferente da banca examinadora. Aulas, improvisos, cenas preparadas e entrevistas. Tudo isso... para ser ator! E no fim, não se sabe porque se passou ou não. Começa aí o primeiro grande teste. O maior de todos os micos! Um mico, porém, que paga-se com o maior prazer. Mas a loucura toda é que há um romantismo no ar! Um desejo de fazer arte e um impulso que não cessa. Um brilho intenso misturado a um nervosismo evidente a cada olhar. Uma mescla de sonho e desespero. E se eu não entrar? E se eu não realizar uma boa cena? E se eu não tiver talento? E se os outros forem bem melhores, mais preparados? É um momento em que passa de tudo no pensamento dos concorrentes.

O nome é anunciado e sobe-se no palco. O futuro ator é ali um número. É mais fácil julgar um número do que uma pessoa, não? Me lembro disso tudo como se fosse ontem. A vontade de montar grupos, fazer teatro e viajar o país, o mundo. E tudo isso, vai se dissolvendo um pouco no decorrer dos quatro anos. Mesmo assim, a universidade é como um pai; bondoso e acolhedor. O duro é descobrir isso anos depois! Quando já se está órfão!

Os anos não passam, voam! E quatro anos parecem ao fim, poucos meses. Então, chega um momento crucial. O fim de um processo e a busca de um novo começo. É hora de abandonar o "pai", perder o cordão umbilical e ganhar o mundo. Sem onde nem porquê! Mas, assim é a vida. Aos poucos, os mistérios vão sendo desvendados. Depois da formatura é a hora de decidir. O que fazer? Formar um grupo, montar uma peça, dar aulas, fazer mestrado... Tudo isso também. No entanto, a maioria opta pelo mercado. E isso, gera uma corrida ao grande centro: São Paulo.

A cada ano, atores formados em diferentes escolas, e até em não-escolas (ops, não resisti à piada!), iniciam a briga para estabelecer-se no mercado. E o que é o "mercado"? Testes e mais testes. Fotos, currículos, entrevistas, produções, tentativas, muitas, constantes e eternas. Porém, o mercado não é capaz de absorver a demanda. Assim, muitas pessoas descobrem que na realidade, o mercado de São Paulo não é tão acolhedor quanto parece e por outro lado, pode não ser a única opção. E realmente não é. Nem todos estão dispostos e têm interesse de se submeter a testes, às negativas, à dureza da cidade. Claro que, mesmo dentro da grande cidade, existem diversas opções. Há grupos e artistas que correm na periferia do chamado mercado e desenvolvem sua pesquisa. Aliás, estes grupos ganham mais espaço a cada dia. Devido a leis de incentivo e, acredito também, devido a qualidade e a honestidade que estão contidas em seus trabalhos.

Há que se fazer aqui uma ressalva. As pessoas vêm de muitas cidades diferentes para cursar a universidade. Muitas vezes, acabam voltando para sua terra natal e lá desenvolvem seu próprio projeto. Um ator, não necessariamente precisa trabalhar na televisão, no cinema, isso é uma opção, uma escolha. Não existe aqui, certo ou errado. Devo dizer, que admiro aqueles que são capazes de manter sua pesquisa em sua própria cidade. Criar um campo de resistência à massificação da Arte. Criar um pólo sob outro olhar, em outro lugar, sob outras condições. Estou certa de que isso, gera um novo determinante sobre a obra e a maneira de ver o Teatro.

Claro que o meio, em que se vive, influencia diretamente o que fazemos e a maneira como determinamos nossas escolhas. As necessidade mudam. É correto para o artista optar através de seus desejos. O artista deve ser honesto com a sua própria consciência e com a obra de arte, seja ela qual for. Assumir o que faço e porque faço! A cada dia, crescem estes focos regionais de arte. Não só em nosso estado, no interior de São Paulo, mas também em pólos como Recife, Salvador, Curitiba, Porto Alegre, onde há diferentes formas de pesquisa e reconhecimento da produção artística. Não importa onde. O importante é fazer. O melhor de tudo é cada um achar o seu lugar!

E a cada ano, vemos mais atores, aparentemente desconhecidos e novatos, surgirem em trabalhos da grande mídia televisiva mostrando que em todos os lugares os talentos nascem e se desenvolvem. O fato do grande público não conhecer um ator ou um grupo não significa que ele não sobreviva e não seja competente no que se propõe. Assim acredito que o caminho é sem dúvida, a descentralização da Arte. A coexistência de diferentes pólos de desenvolvimento nas mais diversas regiões do país não só é necessária mas fundamental. Só assim a cultura torna-se um bem social acessível à todos. E a troca entre os grupos e artistas de diferentes regiões ajuda a universalizar a arte e isso é benéfico para todos. Desta forma, cada grupo, cada ator e seu próprio meio renasce a cada trabalho, como no dia em que os futuros atores pagam o primeiro mico do resto de suas vidas, sem medo de errar, experimentar. Em busca de um sonho, de um desejo, de um desabafo! Os verdadeiros artistas, onde quer que estejam, sempre são dignos da função que exercem. Enxergam além da superficialidade que muitas vezes sobrevoa o "mercado" fugindo da simples busca pela fama barata, realizando assim um ato de resistência benéfica e corajosa. Independente de quem está na platéia para aplaudir ao término do espetáculo.

Rennata Airoldi
São Paulo, 5/2/2003

 

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