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Terça-feira, 4/2/2003
Talvez...
André Pires

Não foi um estudo antropológico, nem mesmo um teste de resistência pessoal; a decisão de passar um sábado inteiro diante do meio de comunicação mais justamente criticado dos últimos tempos surgiu da soma de uma total falta de novas opções de lazer com uma preguiça aguda motivada pelo chove não molha pós-dilúvio, aqui no Rio. A boa e velha máquina de fazer doidos nem pra isso serve mais é o que prega a mídia especializada e intelectuais em plantão televisivo. E para aprofundar ainda mais a tese, os programas semanais de fofoca me fazem acreditar, dia após dia, que a TV atual está na fase dos idiotas. Eu leio jornais, acompanho algumas revistas e acesso sites que ainda se preocupam com a qualidade intelectual de seu produto (obviamente não me refiro a blogs), quando me sentei diante da TV nesta tarde de sábado não esperava nada mais do que alguns glúteos com qualidade proporcional a falta de pudor de suas donas, tragédias cotidianas acompanhadas por helicóptero e com narração de novela radiofônica e, quem sabe, algum humano geneticamente mal formado e desprovido de qualquer tipo de escrúpulos.

Pois pasmem: a surpresa saltou de minha telinha e invadiu meu corpo tal qual a menininha do, agora cultuado, O Chamado. Flipando de canal em canal como um doido (fui criado pela programação infantil do final da década de oitenta início da de noventa, aquilo sim era uma máquina de fazer insanos: Plunct-Plact-Zum, Gorpo, Fofão, Jaspion...) esbarrei em programação política e cultural de bom nível, e no mais improvável dos locais. A rede de canais Globosat me proporcionou primeiramente acompanhar a elegante surra dialética que o Presidente venezuelano Hugo Chavez aplicou em uma mal intencionada e pessimamente preparada Miriam Leitão. A pobre criatura gaguejava um portunhol mais barato do que o de uma sacoleira de Assunção. O clone mais mal acabado de Zélia Cardoso de Melo parecia mais preocupado em atacar um dos presidentes mais contundentes da América Latina do que apresentar/levantar questões e abrir o espaço para esclarecimentos importantes. Com isso conseguiu apenas mostrar-se um sparring mal preparado para um boxeador acostumado a enfrentar verdadeiros pesos-pesados midiáticos em seu país. As tentativas de imprensar o revolucionário estadista nos corners só o irritava pela pachorra da oponente que, muitas vezes, teve que ser colocada em seu lugar com merecido deboche presidencial, "Não sei quem lhe disse que deve existir uma contradição entre revolução e democracia". Pede pra sair, Leitão. Como editora final do programa Miriam ainda bateu pézinho e tentou uma covarde e irrisória cartada final: quando rolavam os créditos a global preparou uma edição especial só com imagens violentas das manifestações em Caracas. Prova final da falta de ética e rancor tendencioso da jornalista tupiniquim, qualidades base para um profissional de imprensa atualmente.

Já satisfeito com mais de meia hora sem um apresentador de riso histérico anunciando pegadinhas mal ensaiadas, recebi como um brinde a entrevista curta, porém preciosa, de Noam Chomsky na GloboNews, of all places! O lingüista mais dissidente do império americano desfiou seu notório acervo de críticas fundamentadas e historicamente precisas com relação, sobretudo, as intervenções norte-americanas movidas a sede de combustível fóssil e soldados de patente e conhecimento raso. Cabelos vastamente brancos, óculos na ponta de nariz e um pulôver que deve ter sido bordado pelas próprias mãos, o vovôzinho mostrou uma tenacidade e disposição capazes de meter medo em Mickey Mouse enfurecido pelas novas leis anti-propriedade intelectual. "Lembre-se que não sou pacifista, acredito que há ocasiões em que a força bruta se faz necessária". Now bring me my baseball bat and I`ll show this fucking mouse a couple of tricks!

Para descansar um pouco a cabeça um pouco de cultura. O canal Futura (sim, Globosat de novo!) apresenta uma entrevista com João Ubaldo Ribeiro. A repórter não quis (conseguia?) entrar em questões muito profundas sobre o fazer literário, ou sobre qualquer aspecto da literatura em si, o que além de irritar bastante fez com que eu repensasse meus pontos de vista em relação à importância do diploma em jornalismo. Ubaldo conseguiu, no entanto, encaixar alguns interessantes petardos sobre o desinteresse pela literatura no país. "O preço não é oproblema, o preço do livro no Brasil é igual de outros países, exceto em Cuba onde é subsidiado, e quem compra um CD, que é muito mais custoso, pode muito bem comprar um livro. O que se perdeu foi o hábito".

É verdade Ubaldo, o que se perdeu foi o hábito. Muito mais cômodo sentar diante de uma telinha iluminada e babar catatônico diante de sua inebriante dança de imagens cheias de informações pré-digeridas para cérebros convenientemente idiotizados. Ah, se todos os sábados fossem como hoje... talvez os livros mais vendidos não fossem de auto ajuda, talvez um romance de um João Ubaldo, Kafka ou Milan Kundera vendessem tanto quanto a última empreitada de veraneio de Carlinhos Brown e sua trupe, talvez o Festival de Felinni lotasse as salas de exibição tanto quanto Xuxa e os Duendes 3, talvez nosso presidente esquerdista não precisasse ir a Davos, talvez o Peter Townsend não fosse pedófilo, talvez...

André Pires
Rio de Janeiro, 4/2/2003

 

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