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Segunda-feira, 10/2/2003
Quem somos nós para julgar Michael Jackson?
Arcano9

Existem dois tipos de jornalismo: o jornalismo que se baseia em notícias que podem mudar sua vida e o jornalismo de bebedor. O primeiro caso engloba todas as reportagens, artigos, documentários, notas e colunas que se referem, por exemplo, à falta d'água no seu bairro, ou ao novo pacote econômico, ou à greve dos ônibus. Você quer e precisa saber o que está se passando para se preparar, nem que seja psicologicamente, ou para fazer algo, quando o fato já estiver consumado. O outro jornalismo se refere ao casamento da Catherine Zeta-Jones com o Michael Douglas, ou ao jogo do Corinthians. Você não ganha nada em saber, mas é o tipo de coisa sobre a qual as pessoas conversam no botequim ou quando, num curto intervalo no trabalho, colegas de cubículo falam numa ida ao bebedor.

Na semana passada, o jornalismo tipo um, relativo à possível guerra contra o Iraque, bem que tentou manter a ditadura sobre o noticiário aqui na Grã-Bretanha - Tony Blair em reunião com Jacques Chirac, Colin Powell no Conselho de Segurança, Saddam Hussein dando rara entrevista a um britânico, etc. Mas o jornalismo de bebedor, encarnado na sombria figura de Michael Jackson, tomou de assalto a vida das pessoas, dos tablóides, dos jornais mais sérios. Eis como um artista pode frear uma guerra...

Michael Jackson, não tenho pudor ou vergonha de admitir, foi um dos heróis da minha infância. Eu tive, sim, um poster dele pendurado na parede do meu quarto. Cheguei a ir à escola com luvas brancas, como ele, e aprendi o passo do "robô", arrastando os pés para trás, que ele fazia nos acordes iniciais de Billy Jean. Que tremenda música, aliás! Até hoje fico arrepiado. Que tremendo álbum o Thriller! Que tremendo clip aquele em que o Michael vira zumbi. Mesmo eu, um gordinho de 10 anos, dança e cantarolava sem entender nada do inglês dele e entrava na onda. Mas vieram tempos amargos para meu ídolo.

Acredita-se que 14 milhões de pessoas, ou mais de 60% das pessoas com a TV ligada na segunda-feira à noite na Grã-Bretanha, tenham assistido ao documentário Living with Michael Jackson, transmitido pela ITV1. Foi a primeira vez que o artista aceitou que um jornalista, Martin Bashir, fosse tão fundo na sua vida. Depois de convencido pelo seu (aparentemente único adulto) amigo, o paranormal Uri Geller, Jackson convidou Bashir para uma visita inédita a seu rancho na Califórnia, o Neverland, e para acompanhar sua vida por oito meses. "Achei que era hora de Michael de abrir sua casa a um apresentador em que eu confiava", disse Geller.

Não preciso lembrar das alegações hediondas feitas contra Jackson em 1994, quando uma criança de 13 anos e sua família obteve uma indenização da US$ 18 milhões para abandonar um processo por pedofilia contra ele. Antes daquele incidente, a estrela ainda estava por cima, com grandes esperanças de repetir o feito de Thriller (CBS Epic/1982), o álbum mais vendido da história (50 milhões de cópias em todo o mundo). A partir daí, tudo desabou de uma forma deprimente. Não só as vendas de seus álbuns foram se reduzindo significativamente até seu último álbum, Invincible (Sony/2001), mas também suas esquisitices passaram a chamar muito mais a atenção, de longe, do que seus fantásticos dons artísticos. A pele cada vez mais nívea, o nariz afinado, seu rancho com um parque de diversões particular, sua relação improvável com mulheres e as separações seguintes. Evidentemente, nada disso superou o medo, ódio e nojo das pessoas com as alegações de pedofilia, que o artista sempre negou, mas que tinham virado sua marca registrada, como o nariz e as máscaras cirúrgicas.

A altíssima audiência e o frisson causados pelo documentário de Michael Jackson em um país como a Grã-Bretanha de forma alguma são imprevisíveis. A pedofilia é o maior problema deste país, pelo menos o que mais choca, o que mais mobiliza. É como se, por causa dos sucessivos casos de arrepiar que ocorreram por aqui, os britânicos tivessem perdido qualquer forma de bom senso ao analisar a relação entre adultos e crianças. Qualquer foto de criança meio despida já tem completa e absoluta conotação sexual e deve ser banida. Qualquer pessoa meramente suspeita de ter acessado um site de teor erótico envolvendo menores é banida da vida pública. Não existe meio-termo, não existe espaço para argumentação. E pedófilos devem ser isolados da sociedade, perseguidos como bruxas, linchados, mesmo que não fique claro se são pedófilos ou não.

O documentário, nesse sentido, é um prato cheio para os tablóides. Do início ao fim, Michael Jackson me pareceu duas coisas: em primeiro lugar, uma pessoa extremamente inocente e sensível, alguém que nunca conheceu o que é a vida de verdade fora das luzes de um palco. Daí advém a sua esquisitice, já que a maioria de nós não entendemos o que é estar do outro lado, com milhões de dólares para gastar e milhões de fãs e papparazzi em perseguição. Em segundo, Michael Jackson me pareceu uma pessoa que não teve infância e que procura, persegue, uma nova chance de ter uma. Quer deixar para trás aqueles tempos em que tinha bolhas nos pés de tanto treinar suas coreografias, e quando o pai o surrava se não fizesse tudo certo. Em suma: ele é inocente e infantil. Uma criança.

Um dos momentos mais dramáticos do documentário é quando ele admite que dorme com crianças. Ele apresenta um garoto, Gavin, de 12 anos, que ele disse ter ajudado a se curar de câncer. Gavin está em silêncio, com a mão dada com o artista, que disse que nunca sugere às crianças dormir no quarto dele, e sim elas que querem. Michael diz que, às vezes, dorme no chão para dar sua cama à criança que o acompanha, às vezes dorme com ela. Para ele, dividir o lugar de dormir é "uma coisa maravilhosa", "charmosa" e "doce". "Por que você não deve dividir sua cama? Essa é a coisa mais amável que se pode fazer, dividir sua cama com alguém", diz o artista. Segundo Michael, as amizades dele com crianças nunca tiveram conotação sexual e os pais de Gavin sabem de sua amizade com Michael e a aceitam. Gavin parece sereno e não fala nada. "Não é sexual, nós dormimos - eu os ponho para dentro, coloco uma musiquinha e quando é hora de ler uma história eu leio um livro", disse o astro.

O primeiro reflexo dos britânicos é achar que Michael Jackson está mentindo, que é improvável demais que o que ele esteja falando seja verdade. Mas, em última análise, Michael Jackson é improvável demais em todos os sentidos, não? Um negro que virou branco? E que afinou o nariz? E se ele realmente apenas gosta de crianças e não lhes faz mal, deve ser condenado por isso?

Outro aspecto "aterrorizante" de Michael Jackson para muitas pessoas, a maneira como ele cria suas crianças, certamente está cercado em exageros, e novamente pouquíssimos têm a coragem de vir a público defendê-lo. Jackson cria suas crianças num mundo de fantasia. Exige que elas usem máscaras quando vêm a público. No outro dia, quase jogou um bebê da sacada de um prédio em Berlim. Tudo isso indica que ele é um papai-monstro? Provavelmente não. Pais sempre querem o melhor para os filhos e às vezes pecam por protegê-los demais. Pais sempre querem que seus filhos sejam felizes. E o que acontece quando esse pai é bilionário? Provavelmente esse pai tem uma imensa propriedade (uma mansão em Alphaville, por exemplo), e proíbe os filhos de ir ao centro da cidade desacompanhados (por medo de seqüestros, assaltos...) Preocupado com o fato do filho ser fotografado por paparazzi e passar a ser identificado por seqüestradores, o papai bilionário decide tornar o filho mais recluso ainda, forçá-lo a usar óculos escuros ou andar com escoltas ao seu redor para que ninguém o veja direito (um efeito semelhante a andar com uma máscara, impedindo-o de ter contato direto com o mundo). Mas o papai milionário também comete erros e deixa o filho dirigir um Mercedes-Benz dentro de sua própria propriedade, e o filho bate o carro contra uma árvore e quase morre (algo semelhante à imprudência de balançá-lo do alto de uma sacada). Em outras palavras: excesso de zelo é um problema de todos os pais. Erros, todos os pais cometem. E quem somos nós, então, para julgar Michael Jackson?

De qualquer forma, o documentário de 110 minutos, apesar de interessantíssimo, foi criticado bastante por alguns espectadores britânicos por causa de seu teor sensacionalista e por não mostrar nada sobre a vida "profissional" do músico - como ele cria, como ele vê a indústria da música, seu cotidiano de pensar em letras, canções, coreografias, etc. O documentário concentra-se apenas em sua vida na misteriosa Neverland. Certamente, aí está o centro da curiosidade de todos, mas eu também gostaria de ter visto mais como a vida de artista se mistura com sua vida pessoal. Outra coisa que é chocante é o tom editorializado irritante do apresentador, a forma com que ele, pela escolha de palavras, parece rejeitar Michael Jackson. Nada de se estranhar. Os argumentos usados por Jackson podem perfeitamente ser usados por pedófilos para justificar seus atos com crianças. Seus hábitos paternos podem certamente ser um sinal de que Jackson é incapaz de criar uma criança direito, e que elas vão ser tão esquisitas quanto ele no futuro - porque, sim, ele é muuuuuuuito esquisito. Mas já chegou a hora das pessoas verem com menos desconfiança o que é esquisito.

Para ir além

Leia meus textos anteriores sobre a pedofilia na Grã-Bretanha e sobre o mundo da música pop.

Arcano9
Miami, 10/2/2003

 

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